Bolsonaro edita decreto, ampliando a relação do que sejam atividades essenciais, para efeito de reabertura gradual do comércio, praticamente fechado há quase dois meses.
Motivo obvio: empresas quebrando, desemprego jorrando, necessidades básicas – dentre as quais, de se alimentar – inflando.
Afinal, não há como se dizer para cidadãos que perderam o emprego, estão proibidos de trabalhar e passam fome, que o governador ou prefeito tal mandou fechar tudo, porque estava “preocupado” com a “preservação” da “saúde” do povo. Misto de deboche com sarcasmo.
O fato é que o presidente da República teve a sua competência de criar normas gerais para a defesa da saúde (CF,24,XII,p.1) arbitrariamente usurpada pelo STF, na fatídica decisão que outorgou a governadores e prefeitos o poder constitucionalmente inexistente de fazerem o que lhes desse na telha, no âmbito de seus feudos estaduais e municipais.
A ordem na federação, cuja linha mestra compete à União fixar via construção de normas gerais (pelo presidente da República ou Congresso Nacional), foi supremamente vilipendiada. E – pasmem – acatada pelo Poder Executivo. O sistema de freios e contrapesos está definitivamente emperrado.
Com o Estado de Direito subvertido implícita e institucionalmente pelo STF, não surpreende, p.ex., ver um governador editar decreto, impedindo pessoas de trabalharem para o autossustento e de suas familias, restringindo ou suprimindo a liberdade de ir e vir, impondo multas ou mesmo prisões, por crimes absolutamente inexistentes.
O Congresso Nacional, a quem a CF/88 atribuiu o poder de legislar sobre direito do trabalho, comercial, civil e penal (CF,22,I), ou o Poder Executivo, naquilo que lhe compete normatizar em tais matérias quando houver relevância e urgência (CF,62), tornaram-se instituições irrelevantes. A ditadura da toga está escancarada. Não precisa de outros para lhe atrapalharem.
Essa síntese denota o seguinte: o Brasil, como Estado Democrático e de Direito, acabou. Só não enxerga isso quem não quiser ou for intelectualmente desonesto. O Poder Executivo transformou-se um Poder meramente nominal. O presidente da República, politicamente resiliente, virou espécie de boneco Bob ou de João bobo achincalhado, que só não é esvaziado de vez, porque tem as Forças Armadas o enchendo de ar.
Estas, as Forças Armadas, também falharam até agora em sua missão maior: não conseguem perceber que o golpe institucional dado veladamente pelo supremo junto à oposição vencida, usurpando a soberania popular com o falso verniz de juridicidade, já se consumou. E sem a violência física que elas, Forças Armadas, ainda anacronicamente pressupõem como o único motivo justificativo para atuarem na defesa do regime democrático e da Constituição.
Apoiados na mais grave mentira jurídico-doutrinária em vigor, engolida acriticamente como “correta e incontestável” pelo presidente, por generais, congressistas, e toda a população (“o STF tem a última palavra sempre”), os onze golpistas valeram-se do defraudamento constitucional, via manipulação de princípios e simultâneo desprezo pelas regras. Não erram nunca. O que dizem é “divino” (ou luciferiano). Independência entre Poderes (CF,2) e o dever de não cumprir ordens ilícitas e criminosas?
Bom, se advierem de ministros, aí, não: a subserviência do Executivo passa a ser obrigatória; caso contrário, o presidente estaria cometendo “crime de responsabilidade” (segundo a visão normativa idílica e inconsciente da qual se retroalimentam). Como se não fosse paradoxal e subversiva da ordem democrática, um ministro do STF, produtor de ato judicial criminoso e dirigido ao chefe do Poder Executivo que deveria respeitar, qualificar o devido descumprimento da aberração pelo presidente da República como “crime de responsabilidade”!
Incrivelmente, suas excelências não enxergam já terem infringido os art.17, 18 e 23,I, da lei 7170/83 (crimes contra a segurança nacional) “n” vezes. Menos ainda admitem ter em mente que o art.142, da CF, foi redigido exatamente para encerrar menosprezos pelas regras (constitucionais e legais) e desordens daí oriundas, que levem ao caos. Parecem também lavar as mãos em relação aos abusos de autoridade e condutas totalitárias que vêm adotando governadores e prefeitos país afora, ignorando serem, os onze, a causa-mor do racha na harmonia normativa da federação. Sem problema. A conta chegará. E será alta, pois a semeadura é livre, mas a colheita, obrigatória. A conferir.
Renato R. Gomes. Mestre em Direito Publico. Escritor. Ex-oficial da MB (EN90-93)
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