É uma desgraça, para o Brasil, que uma grande parte das autoridades públicas tenham decidido dobrar o custo que a pior epidemia da história recente está trazendo para as pessoas. Não basta a morte de 11.000 cidadãos em dois meses pela Covid-19, nem o sofrimento sem limites imposto às famílias que sofreram perdas de gente querida, nem as vidas arruinadas por este flagelo. Governadores, prefeitos e burocratas, cedendo ao pânico, à estupidez e ao interesse político mais grosseiro, estão castigando os cidadãos com atos de franca e aberta demência.
Sem qualquer restrição por parte da justiça, investem todo o seu tempo e energia na invenção de novas proibições, obrigações e castigos para atormentar cada vez mais os milhões de cidadãos que continuam vivos. A desculpa é que tudo o que estão fazendo é para o “próprio bem” da população. Mentira. É apenas o fruto da sua incapacidade para lidar com problemas graves e do seu oportunismo.
As demonstrações dessa corrida em busca da insensatez estão presentes no Brasil inteiro – da mesma maneira como ninguém está livre do vírus, ninguém está livre da presença de governos. Mas é provável que nenhum outro lugar do país esteja sofrendo tanto com essa infecção quanto São Paulo – por ser a maior cidade do Brasil, é naturalmente a que paga mais caro por se ver entregue a políticos que não estão à altura dos seus cargos, suas responsabilidades e seus deveres. São os piores porque, na prática, são os que causam dano ao maior número de pessoas: doze milhões de habitantes na capital, cerca de vinte na área metropolitana.
O que dizer de um lugar em que o prefeito municipal foi capaz de vir a público para anunciar com orgulho, e como uma das maiores obras da sua gestão na presente crise, a compra de 15.000 sacos para cadáveres e 38.000 urnas funerárias – sem contar a abertura de 13.000 covas para enterro e a contratação de 220 coveiros?
Não se discute, é obvio, a necessidade de enterrar os mortos; o prefeito e seus auxiliares não precisam explicar isso a ninguém. Trata-se, apenas, de notar a confusão mental de gente que tem a obrigação de administrar a principal cidade do Brasil. Não sabem o que fazer, mas querem fingir que sabem; o resultado são declarações deste tipo,
Um dos aspectos mais insanos deste passeio ao acaso são as exigências numéricas da prefeitura e do governo de São Paulo quanto ao nível de “isolamento social” que consideram o ideal para a cidade: querem “70%”, e como só estaria havendo “50%”, socam mais e mais proibições, penalidades e multas em cima de uma população que nada fez de errado além de estar viva e precisar viver.
Sua última novidade é um rodízio radical na circulação de veículos. Porque 70%? Como se faz a conta do “isolamento” – ou seja, o que realmente significa esse número? Também não é compreensível que São Paulo esteja, no momento, com 50% do seu movimento normal nas ruas.
A cidade, em novembro de 2019, tinha mais de 6.300.000 automóveis em circulação, além de cerca de 200.000 caminhões e ônibus e 1.200.000 outros veículos de quatro rodas. Segundo as contas das autoridades, uns 4 milhões desses veículos todos – metade da frota – estaria andando todos os dias na rua. Como assim? Onde estariam – espalhados na cidade inteira? A que horas do dia? Porque ninguém consegue ver 4 milhões de veículos circulando por aí? A conta incluiria também as pessoas?
Para bater com os números do governo, teria de haver 6 milhões de paulistanos pela rua, à vista de todo mundo. Onde estão? E o comércio, restaurantes, bares, cinemas, teatros – por acaso 50% disso tudo está aberto? A radicalização do rodízio só obriga as pessoas a deixarem o isolamento dos seus carros, onde não podem contaminar ninguém, e virem se amontoar no transporte público. É o contrário do que o governo quer.
A calamidade da Covid-19 atinge o mundo inteiro. No Brasil ela vem em duplicata.
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
Confira matéria do site Gazeta do Povo.
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