Os políticos, os interesses e a peste

A história do prefeito de Marselha que cedeu a comerciantes de tecido e amargou a morte de mais de metade da cidade.

Temos a imensa sorte de ter vivido tempos de liberdade absoluta. Com todos os problemas que já atravessamos antes, a peste e a guerra não faziam parte do nosso repertório de possibilidades, como inúmeras gerações se acostumaram séculos antes de nós. Não seremos mais os mesmos, provamos o gosto amargo da imprevisibilidade e da impotência. Conhecemos agora um pouco da forma de pensar e decidir dos nossos antepassados, que já viveram a experiência do corte abrupto da rotina e dos sonhos pelo imponderável.

As pragas fazem parte da história da humanidade. Vivemos mais uma e somos a geração que vive com mais recursos e possibilidades de comunicação e cura um drama como este. Isso não diminui nossas dores e nossas incertezas diante da doença e do nosso futuro econômico. Sobram incertezas, mas sabemos que as perdas são certas. Todos sofreremos enquanto atravessamos o caos.

Diante da praga, as qualidades mais importantes de uma liderança política são a firmeza e a capacidade de aprender com a história. Ilustro com o ocorrido na cidade de Marselha, na França, em 1720.

Durante quase 4 séculos o mundo viveu sob as sombras da peste bubônica, transmitida pela pulga do rato. Há quem diga que, muito antes do primeiro surto no início do século XIV, a peste já estava entre nós. A Praga de Justiniano, que devastou o mediterrâneo no século VI tinha sintomas parecidos e, como depois se estudou, a presença da mesma bactéria, Yersinia pestis.

A Marselha do século XVII sabia muito bem como lidar com a peste bubônica, as regras começaram a ser feitas 400 anos antes e era de amplo conhecimento todo tipo de tentativa de colocar um fim às contaminações. Desde a epidemia de 1580 a cidade tinha regras rígidas e, pelo menos desde 1622, estabeleceu um Conselho Sanitário, com a intenção de evitar o caos nas próximas contaminações.

As funções desse Conselho Sanitário eram muito semelhantes às de hoje. Se o mundo mudou completamente, a natureza humana permanece a mesma. Estabeleceu-se um sistema público de saúde e um sistema de certificação de médicos e enfermeiras locais. Outra função era disponibilizar para os cidadãos informações confiáveis sobre doenças e médicos confiáveis, já que o volume de desinformação durante a praga era gigantesco.

Este Conselho Sanitário estabeleceu um sistema de quarentena em 3 fases dos navios que chegavam ao porto, já que a principal fonte de contágio eram os ratos que vinham nesses navios. Foi construída uma estrutura numa ilha próxima, fora de Marselha, para os que precisassem ficar em quarentena.

A primeira fase era a vistoria dos agentes de saúde. Caso houvesse suspeita de peste bubônica na tripulação ou entre os passageiros, o navio era imediatamente encaminhado para a zona de quarentena por 50 a 60 dias. Se não houvesse, passaria para a segunda fase.

Na segunda fase, se verificava o diário de bordo para checar a rota realizada e se a embarcação havia parado em algum porto onde houvesse contaminação pela peste. Caso houvesse, era colocada em quarentena por, no mínimo 18 dias. Se ninguém desenvolvesse os sintomas, a embarcação iria para a terceira fase. Se houvesse suspeita, iria para um local de quarentena mais distante.

A terceira fase era a checagem final para ver se ninguém mais no navio tinha nenhuma suspeita da doença, se os procedimento de limpeza e ventilação estavam em cia e a verificação da mercadoria. Caso tudo estivesse em ordem, era emitido um documento permitindo o desembarque das pessoas e a comercialização da mercadoria.

As regras foram seguidas por quase 100 anos até que chegou a Marselha o Grand-Saint-Antoine, com uma carga caríssima de seda e algodão e também levando a bordo um surto de peste bubônica.

Era 25 de maio de 1720. O navio já havia sido proibido de aportar em Livorno, na Itália. Além de ter passado antes por locais onde havia peste, um passageiro turco havia morrido e infectado membros da tripulação e até o médico do navio. Mas os comerciantes da cidade, um pólo importantíssimo na França, que mirava o Novo Mundo e o Mundo Árabe, pressionaram por uma única exceção, aquele carregamento. O prefeito cedeu.

Em poucos dias, a quebra das regras cobrou um preço altíssimo da população. O sistema de saúde colapsou em uma semana. As pessoas começaram a ficar muito assustadas e mandavam embora de casa e até da cidade quem apresentava sintomas de peste bubônica. Em seguida, o sistema funerário colapsou. A prefeitura abriu covas coletivas que logo ficaram lotadas. Os corpos eram amontoados pelas ruas e as famílias foram desobrigadas de providenciar enterros porque era impossível.

A região de Provence começou a temer que a peste se espalhasse a partir de Marselha e promoveu o isolamento total da cidade. Chegaram a cogitar instituir a pena de morte para quem tivesse qualquer tipo de contato com alguém da cidade. Foi construído um muro de pedra com 2 metros de altura e 70 cm de largura, vigiado por guardas em toda sua extensão, para garantir que os habitantes não saíssem de lá. O pesadelo durou 2 anos.

Quando a cidade finalmente venceu a peste, o império resolveu impor as regras de quarentena dos navios. Marselha perdeu 50 mil dos 90 mil habitantes e outras 50 mil pessoas morreram em cidades vizinhas. Foram necessários 40 anos para recuperar o número de habitantes e o nível de crescimento da cidade.

Não era a primeira vez que Marselha enfrentava a peste, não era a primeira vez em que pessoas pressionavam por exceções. Havia 400 anos de experiências acumuladas no enfrentamento da peste bubônica e conhecimento sobre as consequências de cada atitude. Por que os comerciantes pressionaram por uma exceção e por que o prefeito permitiu se todos eles sabiam de tudo isso? Jamais saberemos, só sabemos que um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la.

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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