Os representantes da população de um município têm o direito de decidir que não desejam, na rede local de ensino, determinados conteúdos que consideram inadequados? Não falamos dos elementos clássicos da educação, constantes nos currículos aprovados em legislações válidas para o país todo, mas de temas controversos, sem embasamento científico, e que inclusive vão de encontro a convicções morais de pais e dos próprios alunos. A resposta do Supremo Tribunal Federal foi um unânime “não”, na conclusão do julgamento virtual da ADPF 457, que pedia a declaração de inconstitucionalidade de uma lei que proibia o ensino da ideologia de gênero.
A Lei Municipal 1.516/2015 de Novo Gama, em Goiás, foi questionada no Supremo em 2017 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que alegou uma série de violações da Constituição Federal, mas também introduziu algumas extrapolações que em nada correspondiam ao conteúdo da lei questionada. Janot afirmou, por exemplo, que o termo “ideologia de gênero” não passava de disfarce para impedir “a simples discussão sobre gênero e sexualidade, o que parece ser o seu principal intento”, quando a expressão, na verdade, descreve uma corrente de pensamento bastante específica e que era o único alvo da legislação em questão.
Não se pode tratar como “direito” o acesso nas escolas a uma tese ideológica que é a negação básica de todos os pressupostos da biologia a respeito da complementariedade entre os sexos
Havia, de fato, uma questão formal em jogo, pois o artigo 22 da Constituição afirma que é competência exclusiva da União legislar sobre “diretrizes e bases da educação nacional”, e por isso uma lei que proibisse o ensino da ideologia de gênero – ou qualquer outro conteúdo, aliás – teria de vir do Congresso Nacional, e não de Câmaras Municipais ou Assembleias Legislativas. Ora, foi justamente do Congresso que veio a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei 9.394/96), para regulamentar essa determinação constitucional. E ela afirma, no artigo 9.º, IV, que a competência de “estabelecer (…) competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” é da União, mas “em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios”.
A lei, portanto, aponta para uma tarefa compartilhada, o que é reforçado no artigo 11 da LDB – “os municípios incumbir-se-ão de (…) baixar normas complementares para o seu sistema de ensino” – e no artigo 30 da Carta Magna (“Compete aos municípios: II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”). Que tenha havido uma unanimidade em torno de uma interpretação hipercentralizadora da Constituição já é bastante preocupante, mas será muito pior caso os ministros também estejam de acordo com outros argumentos levantados por Janot.
Até agora, o único voto divulgado é o do ministro Edson Fachin, que acompanhou com ressalvas o relator Alexandre de Moraes. E alguns trechos parecem indicar que, assim como ocorreu na equivocada decisão que equiparou a homofobia ao racismo, há ministros comprando integralmente o pacote doutrinário dos ideólogos de gênero. “O reconhecimento da identidade de gênero é, portanto, constitutivo da dignidade humana. O Estado, para garantir o gozo pleno dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o acesso a conhecimento a respeito de seus direitos de personalidade e de identidade (…) Impedir ao sujeito concreto o acesso ao conhecimento a respeito dos seus direitos de identidade e personalidade viola os preceitos fundamentais inscritos na Constituição, dentre eles, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, escreveu o ministro.
A confusão de conceitos é evidente. Ser tratado com dignidade independentemente de qualquer fator – cor da pele, religião, orientação sexual, convicções filosóficas ou políticas, o que for – está, sim, entre os direitos humanos, e isso vale também para aqueles que apresentam a chamada “disforia de gênero”, ocorrida quando alguém se sente incomodado com seu sexo biológico, até o ponto de se submeter a tratamentos hormonais e cirúrgicos. Não há justificativa para a discriminação ou para a violência. Coisa bem diferente, no entanto, é tratar como “direito” o acesso nas escolas a uma tese ideológica que é a negação básica de todos os pressupostos da biologia a respeito da complementariedade entre os sexos, tratando o gênero como algo diferente do sexo biológico, uma mera “construção social” e que pode ser alterado conforme a vontade do indivíduo.
A defesa da ideologia de gênero no ambiente escolar não é “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”. Ninguém em sã consciência defenderia sob essa bandeira a promoção de qualquer tese que negasse princípios básicos ou fatos irrefutáveis ensinados em outras disciplinas, da Geografia à Matemática, da Química à História. Há tanto “direito humano” a ser educado sobre ideologia de gênero quanto a ser ensinado sobre o terraplanismo, sobre a teoria da geração espontânea ou sobre revisionismos históricos, para ficar apenas em poucos exemplos.
Não faltou, no voto de Fachin, a menção à “laicidade do Estado”, o espantalho favorito de dez entre dez defensores da engenharia social. Espantalho porque tenta transformar em controvérsia religiosa uma discussão que se desenrola em outras bases, frequentemente científicas ou filosóficas. Por mais que haja indivíduos e entidades religiosas na linha de frente da contestação à ideologia de gênero, essa contestação se dá apenas em bases biológicas e antropológicas, aqueles “termos puramente racionais” de que fala John Rawls quando defende o direito dos religiosos a participar do debate público e defender suas posições. Mesmo assim, saca-se do nada, como um coelho retórico tirado da cartola, o fantasma de um “obscurantismo religioso” contra o qual deve-se brandir a “laicidade do Estado” – ainda que não haja na lei de Novo Gama o menor indício de motivação religiosa.
A decisão cria jurisprudência para várias outras ações que também contestam leis municipais e estaduais que barram a ideologia de gênero nas escolas. É um ponto baixo na história do STF, que assim cala a voz da população, exercida por meio de seus representantes eleitos em assuntos nos quais a legislação – seja a Constituição, a LDB e até tratados internacionais – lhe dá esse direito. E pior: impõe essa mordaça em nome de engenharias sociais dispostas a transformar a sociedade negando verdades básicas sobre o ser humano.
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