Lei do regime militar vira baliza para investigar atos pró-ditadura

"Manifestantes pregam abertamente uma intervenção militar e o fechamento do STF e do Congresso durante ato público em Brasília, no último domingo (19).| Foto: Sérgio Lima/ AFP "

As manifestações pelo fim do isolamento social do último final de semana levaram a Procuradoria-Geral da República (PGR) a pedir que o Supremo Tribunal Federal (STF) abrisse um inquérito para apurar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia participativa brasileira”. Em meio às manifestações pedindo o fim do isolamento social havia grupos defendo uma intervenção militar e o fechamento do Congresso e do STF.

O argumento usado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para pedir a abertura de uma investigação é a Lei de Segurança Nacional, sancionada ainda durante a ditadura, em 1983. O pedido foi aceito pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, que abriu um inquérito sigiloso para tratar do assunto.

No pedido de investigação, Aras argumentou que uma das pautas dos manifestantes que foram às ruas no domingo (19) era a reedição do AI-5, o ato institucional que endureceu o regime militar no país. “O Estado brasileiro admite única ideologia que é a do regime da democracia participativa. Qualquer atentado à democracia afronta a Constituição e a Lei de Segurança Nacional”, afirmou o procurador-geral.

A PGR pediu abertura de inquérito no STF porque a Corte tem a prerrogativa de investigar políticos com mandato. Segundo a PGR, deputados federais participaram dos atos no final de semana. O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) chegou a discursar para manifestantes em frente ao Quartel General do Exército em Brasília durante a manifestação na capital do país A participação do presidente no ato foi alvo de uma enxurrada de críticas da classe política.

O que diz a Lei de Segurança Nacional

A Lei de Segurança Nacional em vigor no Brasil é a Lei 7.170, de 1983, que prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão a integridade territorial e a soberania nacional; o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

Segundo o advogado Francisco Monteiro Rocha Júnior, coordenador dos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), os protestos do final de semana que reivindicavam a volta da ditadura e do AI-5 podem ser enquadrados em dois dispositivos da Lei de Segurança Nacional.

Segundo o advogado, os manifestantes que pediam fechamento do Congresso e do STF poderiam, inclusive, terem sido presos em flagrante com base nos dois artigos. São eles:

  • Art. 16 – Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.
  • Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.

“A atual interpretação que a lei deve receber, independentemente daquilo que fora o objetivo do legislador na década de 80, é a defesa do Estado Democrático de Direito e do regime republicano. Condutas que atentem contra esses valores devem ser apuradas e eventualmente punidas”, defende Rocha Júnior.

Apesar de a lei já ter sido aplicada a vários casos no Brasil, é a primeira vez que ela é invocada em um tribunal superior, segundo o advogado. “A Lei de Segurança Nacional, que foi promulgada em 1983, jamais foi objeto de processos junto aos tribunais superiores brasileiros, segundo a base de dados pública tanto do STF quanto do STJ”, diz.

Ministro cita Constituição para apurar atos pró-ditadura 

Em sua decisão para autorizar a abertura do inquérito, Alexandre de Moraes cita a Constituição para instaurar o inquérito solicitado pela PGR. O ministro argumenta que a Carta Magna não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático, em seu artigo 5.º. O trecho destacado por Moraes estabelece que é “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

A Constituição também determina, no artigo 34, que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública e garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação, entre outras hipóteses. Essa previsão constitucional também foi invocada por Moraes ao decidir pela abertura de inquérito.

O ministro ainda argumenta que a Constituição também não permite a realização de manifestações visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – como voto direto, secreto, universal e periódico; separação de poderes e direitos e garantias fundamentais –, com a consequente instalação do arbítrio.

Moraes conclui defendendo ser imprescindível a verificação da existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano. O ministro também defende a apuração das suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os Direitos Fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao Estado Democrático de Direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura.

Quem pode ser responsabilizado com base na Lei de Segurança Nacional?

No pedido feito ao STF, Aras não menciona expressamente o presidente da República, Jair Bolsonaro. O procurador-geral apenas cita a participação de deputados federais nos atos, o que atrai a competência de investigação para o Supremo.

Mas segundo Rocha Júnior, se ficar comprovado que o presidente cometeu crimes, ele pode ser responsabilizado. “Ainda que o Procurador Geral da República tenha, a priori, descartado a participação do Presidente da República, ele e outros políticos que participaram dos atos podem ser investigados, desde que se comprove que concorreram de qualquer modo para os crimes”, explica o advogado.

O inquérito pode, inclusive, ser usado como ponto de partida para um eventual pedido de impeachment, a depender do resultado. “Por fim, sim, esse inquérito pode eventualmente fornecer os fundamentos para um pedido de impeachment, visto que a conduta do Presidente pode, em tese, constituir-se em crime de responsabilidade”, explica Rocha Júnior.

Brasil já teve 6 versões da Lei de Segurança Nacional

O Brasil já teve outras cinco versões da Lei de Segurança Nacional. A primeira foi criada em 1935, durante o governo de Getúlio Vargas, e definia crimes contra a ordem política e social e tinha como finalidade possibilitar um cerco mais rigoroso aos opositores do Estado.

Com a redemocratização surgiu, em 1953, a Lei nº 1.802, que definia os crimes contra o Estado e a ordem política e social. Essa legislação foi alterada pelo pelo Ato Institucional nº 2, já na ditadura militar, em 1965, mas seguiu em vigor. O AI-2 estabeleceu a competência da Justiça Militar para julgar todos os crimes políticos, entre outras alterações.

A partir de 1967 foram editados dois decretos que alteraram de forma significativa a Lei de Segurança Nacional em vigor até então. Um em 1967 e outro em 1969.

Em 1978, uma nova Lei de Segurança Nacional entrou em vigor. A Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978 era mais branda que as anteriores.

Já a Lei de Segurança Nacional em vigor é a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Ela foi promulgada no governo do presidente João Figueiredo, último presidente da ditadura militar no Brasil.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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