Não, não há amparo nos fatos a teoria de que o governo chinês desenvolveu o novo coronavírus em laboratório para abalar a economia mundial e dar um salto hegemônico. Dito isso, é preciso reconhecer que o Estado chinês está engajado em uma guerra de propaganda global para eximir-se de responsabilidade na propagação da doença. E, nessa guerra de propaganda, tenta calar o mundo como costuma calar seus próprios cidadãos.
O exemplo mais próximo dos brasileiros foi a reação destemperada do embaixador da China no Brasil, Yang Yanning, a uma crítica feita ao governo de seu país pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), comparando a pandemia do coronavírus ao desastre nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, no período soviético. Além de exigir retratação, Yang compartilhou — e depois apagou — um tuíte que ataca a família Bolsonaro como um todo.
Se fosse um deputado qualquer, as críticas de Eduardo Bolsonaro à China teriam outro peso. Ele sabe, e todos sabem, porém, que o que ele diz é entendido como o pensamento uníssono dos Bolsonaro. E, deve-se reconhecer, poderia ter evitado todo esse imbróglio, se quisesse. O deputado foi inconsequente, não há dúvida.
Mas, se estivesse interessado em manter a boa relação diplomática com as autoridades brasileiras, o embaixador Yang se agarraria ao fato de que oficialmente Eduardo Bolsonaro não fala em nome do Poder Executivo, como bem lembrou o vice-presidente Hamilton Mourão. Era a desculpa perfeita para ignorar a provocação.
A escolha do embaixador Yang de se prender ao outro fato, o de que Eduardo Bolsonaro é filho do presidente e pensa como ele, explica-se pela campanha global que o governo chinês está fazendo para calar as críticas à maneira como lidou com a explosão da epidemia.
As ações de um embaixador, ainda mais de um diplomata submetido à rígida disciplina do governo chinês, não têm nada de aleatórias e devem ser entendidas como parte de uma estratégia mais ampla do país que ele representa. Em outras palavras, o destempero do embaixador Yang tem a aprovação de seus superiores em Pequim.
Se tivesse compromisso com o bem-estar de sua própria população e não com a finalidade única de garantir a sobrevivência do Partido Comunista Chinês como detentor único do poder, Pequim teria sido mais transparente e teria adotado medidas mais imediatas na origem da epidemia. Mas governos de Estados totalitários são assim: escondem acontecimentos negativos até que não seja mais possível, pela simples razão de que não podem ser punidos nas urnas ou por outras formas de livre participação política.
Alguns fatos rápidos sobre a tentativa de acobertamento chinês da epidemia:
- As primeiras infecções de seres humanos aconteceram provavelmente em novembro de 2019 na província de Hubei. Os primeiros casos foram descobertos no início de dezembro. Já no final daquele mês, o governo de Taiwan suspendeu voos vindos da região afetada. O governo chinês, porém, nada fez para isolar a área. Se o tivesse feito, teria evitado que o vírus se espalhasse para o resto do país e para o mundo. Quando finalmente adotou a medida, 5 milhões de pessoas já haviam deixado a região de origem do vírus, levando-o para outros lugares;
- A razão pela demora foi uma só: o governo chinês não queria admitir a gravidade do surto. As autoridades só reconheceram que havia contaminação entre seres humanos mais para o final de janeiro, quando isso já era anunciado como fato comprovado pela comunidade científica mundial;
- Ao longo de janeiro, apesar dos repetidos apelos internos que incluiu uma greve de cinco dias de agentes de saúde, Hong Kong, um enclave semiautônomo cujo governo é um fantoche de Pequim, recusou-se a fechar as fronteiras com a China continental, o que poderia ter evitado a contaminação local;
- Durante todo o período inicial da epidemia, o aparato de censura do governo chinês tratou de limpar as referências à doença feitas pelos usuários da rede social local WeChat (Google, Facebook e Twitter são banidos na China);
- Quem tentou alertar o mundo foi punido pelas autoridades. É o caso do oftalmologista Li Wenliang, que foi preso ao divulgar o surto no início de janeiro e obrigado a assinar uma carta de retratação. (Pois é, a ditadura chinesa tem essa obsessão em forçar os outros a “retirar o que disse”.) Só na semana passada, para conter a revolta da população, que vê Li como herói (com covid-19, ele morreu em fevereiro), o governo chinês pediu desculpas à família e mandou “investigar” os policiais que puniram Li. Puro jogo de cena;
- As autoridades chinesas vêm espalhando notícias falsas com o duplo objetivo de apresentar sua reação à epidemia como um modelo de eficiência e rapidez e de se eximir de responsabilidade. Foram espalhadas fotos de um suposto hospital que o governo teria construído em questão de dias. Descobriu-se, depois, que eram fotos antigas de um conjunto residencial pré-fabricado. Outro exemplo de fake news foi a de que quem levou o vírus para China foram militares americanos. Essa teoria fabricada, que começou a circular primeiro em sites financiados pela Rússia, foi replicada nas redes sociais por altas autoridades chinesas, como Zhao Lijian, vice-diretor do Departamento de Informação do Ministério das Relações Exteriores chinês.
Pois bem. O esforço de Pequim para ocultar os fatos não se restringe a uma atuação doméstica. Não é de hoje que o governo chinês vem expandindo a tentativa de calar vozes dissonantes ou críticas para além de suas fronteiras. Há duas razões simples para isso: a primeira é que informações negativas que circulam no exterior em algum momento chegarão aos ouvidos e olhos dos cidadãos chineses; a segunda é que, conforme cresce a ambição da China de se tornar uma força hegemônica global, aumenta também a preocupação com a imagem que o país projeta além de suas fronteiras.
Nesse contexto se inserem, por exemplo, os esforços para dificultar ao máximo o trabalho de correspondentes estrangeiros na China. Como não existe imprensa independente dentro do país, a presença desses profissionais é essencial para que o mundo — e, em certa medida, os próprios chineses — tenham informações mais confiáveis do que acontece por lá.
Sempre que as publicações estrangeiras divulgam reportagens que não agradam ao governo chinês, este trata de expulsar correspondentes ou de negar a concessão de vistos de trabalho.
Em fevereiro, o governo chinês baniu três repórteres do Wall Street Journal, porque o jornal americano havia publicado um artigo sobre o coronavírus com o título “A China é o verdadeiro homem doente da Ásia”. Os jornalistas expulsos sequer eram autores do texto.
Na semana passada, foi a vez de o governo chinês expulsar jornalistas do New York Times, do Washington Post e, mais uma vez, do Wall Street Journal. Pequim usou como desculpa a necessidade de retaliar medidas adotadas pelo presidente americano Donald Trump para limitar a atuação de estatais chinesas de comunicação nos Estados Unidos. Mas a verdade é que as expulsões estão mais ligadas à necessidade do governo chinês de conter reportagens negativas relacionadas à epidemia. O New York Times, por exemplo, teve papel essencial em divulgar a história do médico Li Wenliang, chegando a entrevistá-lo em janeiro, quando estava hospitalizado com coronavírus.
No momento crítico que o mundo vive hoje, é evidente que o ideal seria evitar confrontos diplomáticos e focar na cooperação internacional contra a pandemia. Mas a realidade é que, como já ficou mais do que demonstrado, essa não é a maior preocupação do governo da China — mais interessado em resguardar sua imagem, calando o mundo como cala seus cidadãos.
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Diogo Schelp
Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).
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