Vivemos um sistema de Justiça disfuncional e altamente discriminatório, com pobres inundando o sistema carcerário por crimes menores, enquanto privilegiados políticos dificilmente chegam a ser efetivamente processados, quanto mais condenados e presos. Tomemos, como exemplo dos problemas, a atuação do Supremo Tribunal Federal em casos criminais, inclusive na Lava Jato.
Fora o processo do mensalão, conduzido com mãos de ferro pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, contam-se nos dedos os políticos que foram presos por condenação definitiva do STF. Alguns ministros, inclusive os três mais antigos da casa, aparentemente jamais expediram mandados de prisão por condenação, mesmo tendo dezenas de anos de atuação no Supremo. Ou todos os parlamentares investigados nos gabinetes desses ministros eram inocentes, o que parece pouco provável diante do que revelou a Lava Jato, ou algo está muito errado no sistema de foro privilegiado.
Um levantamento do site Congresso em Foco em 2015 apontou que 500 parlamentares haviam sido investigados desde a Constituição de 1988. Cerca de 45 para cada ministro do STF, em média, antes de empreiteiras na Lava Jato implicarem centenas de políticos. Parece improvável que tantas investigações fossem infundadas. Uma das dificuldades para a responsabilização de políticos no Supremo é o rigorismo excessivo em decisões iniciais nas apurações e processos. Ainda que ministros afirmem estar seguindo a lei, na prática acabam exigindo mais do que a lei prevê e, com isso, impedem precocemente o desenvolvimento dos processos. Essa postura é ilustrada por três casos da Lava Jato.
Uma das dificuldades para a responsabilização de políticos no Supremo é o rigorismo excessivo em decisões iniciais nas apurações e processos
O primeiro é a acusação apresentada para o STF em junho de 2016 contra o deputado Eduardo da Fonte. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o parlamentar e o falecido senador Sérgio Guerra teriam ajustado R$ 10 milhões em propinas com a empresa Queiroz Galvão para que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras de 2009, de que o senador fazia parte, não alcançasse resultados efetivos.
Após a investigação, quando o MPF apresenta uma acusação formal, a Justiça precisa decidir se o acusado deve ou não ser processado. Essa decisão é chamada de “recebimento” da denúncia e só deve acontecer quando existe a chamada “justa causa”, que consiste em “elementos probatórios mínimos” – para usar a linguagem do próprio STF – que apontem a existência de um crime e quem é o responsável por ele. Nesse momento inicial do processo, se houver dúvidas sobre a responsabilidade do acusado, a denúncia deve ser “recebida” – a dúvida favorece a sociedade (“in dubio pro societate”). Isso porque ao longo do processo o MPF poderá apresentar provas adicionais. No julgamento final, a lógica é a contrária: só se condena o réu quando há provas para além de qualquer dúvida razoável – a dúvida favorece o réu (“in dubio pro reo”).
Em novembro de 2016, chegou o momento de a Segunda Turma do STF decidir se a denúncia contra Eduardo da Fonte seria recebida. O ministro relator, o saudoso Teori Zavascki, votou pelo seu recebimento. No entanto, Dias Toffoli pediu vista. Em dezembro de 2017, apresentou seu voto, argumentando que não havia prova suficiente para dar início ao processo porque a acusação de corrupção tinha por base, supostamente, apenas a palavra de delatores.
Havia duas posições divergentes disputando espaço. A acusação tinha por base, de fato, depoimentos prestados por Paulo Roberto Costa e, posteriormente, Fernando Soares, ambos colaboradores, que declararam ter havido contatos entre eles, os dois parlamentares e a Queiroz Galvão, ajustando-se o suborno para que a CPI não prosperasse. Entretanto, o voto de Zavascki mostra que havia muito mais que isso. Existiam comprovantes de passagens aéreas que demonstram as viagens dos parlamentares em datas coincidentes para as reuniões, assim como de hospedagem em hotel na data em que uma reunião ocorreu.
Mais ainda: foi possível recuperar um vídeo gravado de uma das reuniões, em que estão presentes Paulo Roberto Costa, Fernando Soares, Idelfonso Colares (alto executivo da Queiroz Galvão) e os parlamentares. O vídeo conflitava com depoimento do deputado Eduardo da Fonte, que, segundo Zavascki ressaltou, havia negado “conhecer Fernando Soares ou ter participado de encontros nesse período para tratar da CPI da Petrobras”.
O áudio da reunião deixou claro que os presentes trataram, sim, da CPI da Petrobras, cujo abafamento era do interesse do diretor da Petrobras e da empreiteira, potenciais investigados que tinham razões para temer a revelação de seus ilícitos. Embora a conversa gravada não tenha revelado o acerto explícito de propinas, os colaboradores esclareceram que isso jamais acontecia nas reuniões, onde o ajuste era mais sutil, cifrado. Eles apontaram um trecho do vídeo em que, segundo afirmaram, ficava claro o combinado. Nele, Idelfonso Colares lá pelas tantas comenta: “dando suporte aí ao senador”. E o senador respondeu: “isso… conversa aí entre vocês”.
Não se pode esperar, em situações de corrupção, que o corrupto passe recibo. Normalmente a prova do crime é indireta e não direta
Para além de tudo isso, a CPI da Petrobras foi encerrada em 2009 apontando a “inexistência de indícios de irregularidades”, de modo contrário ao que tinha demonstrado o Tribunal de Contas da União. Hoje as fraudes nas contratações e a corrupção foram trazidos à luz do dia. Naquela época, possivelmente ocultados.
Além disso, Zavascki assinalou que o Ministério Público apresentou indícios do pagamento das propinas, embora não fosse necessário, já que a corrupção se consuma com o ajuste do suborno. Foram apresentados, para isso, depoimentos de Alberto Youssef, Carlos Rocha, Delcídio do Amaral e Pedro Correa.
Na sessão de julgamento, estavam ausentes Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Coube a Gilmar Mendes desempatar e este acompanhou Toffoli, rejeitando a acusação. O processo criminal, assim, nem sequer iniciou. Desse modo, os ministros vencedores negaram valor probatório para uma série de indícios relevantes, um tipo de prova que tem seu valor reconhecido pela lei.
Não se pode esperar, em situações de corrupção, que o corrupto passe recibo. Normalmente a prova do crime é indireta e não direta. No contexto de crimes graves de difícil prova, tribunais internacionais, inclusive de direitos humanos, reconhecem que a prova indireta, indiciária, é apta até mesmo para proferir condenações, quanto mais para meramente dar início ao processo.
Dentre 18 denúncias oferecidas pelo MPF perante o STF na Lava Jato, sete foram rejeitadas na Segunda Turma
Como explicar que os parlamentares, dentre os quais um membro da CPI, reuniram-se com potenciais investigados de modo oculto para tratar desse assunto? Como explicar a frase do senador incentivando que os potenciais investigados lhe dessem um “suporte”? Tais fatos, somados aos comprovantes de viagens e indícios de pagamentos de subornos, são provas independentes que corroboram os relatos detalhados dos colaboradores. Isso aponta que a rejeição da denúncia por suposta falta de provas que corroborassem a palavra dos delatores foi equivocada, ainda mais diante da regra de que, na dúvida, dá-se início ao processo criminal.
Apresentei o acórdão que registra os votos antagônicos de Zavascki e Toffoli para oito juízes federais de diferentes perfis e com experiência na área criminal, perguntando o que fariam se fossem seus julgadores. Sete deles, ou 87,5%, afirmaram que receberiam a denúncia – um deles ainda disse que condenaria com base nessas provas se fossem aquelas disponíveis no momento da sentença.
A decisão ilustra uma das maiores dificuldades para o avanço de casos criminais de foro privilegiado, especialmente no Supremo, que é o rigorismo excessivo de alguns ministros e que impede o início do processo penal. Na primeira instância, o caso provavelmente teria se desenvolvido, abrindo a oportunidade, inclusive, para que o MPF apresentasse provas adicionais.
Sintoma desse rigorismo de alguns ministros é o fato de que, dentre 18 denúncias oferecidas pelo MPF perante o STF na Lava Jato, sete foram rejeitadas na Segunda Turma. No relatório divulgado por Edson Fachin, ministro relator dos casos, no fim de 2019, ele registrou que ficou vencido em 5 dos 7 julgamentos, por entender que as acusações deveriam ter sido recebidas.
Alguns ministros, para autorizar medidas investigativas, exigem um nível de robustez de prova que só poderia ser atingido exatamente se as investigações fossem autorizadas
De modo similar, num segundo caso, uma acusação de corrupção contra o senador Ciro Nogueira foi rejeitada com base em voto de Toffoli, acompanhado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, sob o argumento de que não havia provas que corroborassem a palavra dos colaboradores. Fachin ficou vencido e, em seu voto, apontou várias evidências que confirmavam os depoimentos dos delatores. Dentre elas, estão as entradas do senador na sede da empreiteira, nove visitas suas a Paulo Roberto Costa, anotações com o endereço do senador onde as entregas de dinheiro teriam ocorrido, a contabilidade informal de Alberto Youssef, registros de voos para as entregas de valores, uma descrição acurada da parte interna da residência do parlamentar pelo entregador do dinheiro e um depoimento de um ex-assessor do político, não colaborador, que apontou movimentações em dinheiro vultosas pelo preposto do parlamentar que seria o receptor das propinas.
Num terceiro caso, Fachin novamente ficou vencido ao decidir sobre o recebimento da acusação por corrupção e lavagem de dinheiro proposta contra o deputado José Nobre Guimarães. Segundo a denúncia, o colaborador Alexandre Romano teria pago R$ 97.761 ao parlamentar para que intermediasse junto ao seu apadrinhado, o presidente do Banco do Nordeste do Brasil, um financiamento em favor da empresa Engevix no valor de R$ 260 milhões. Pela concessão do financiamento, conforme a acusação, o colaborador teria recebido R$ 1 milhão e repassou cerca de 10% para o deputado mediante cheques usados para quitar dívidas do parlamentar junto a pessoas jurídicas. Os pagamentos foram feitos por meio de contratos fictícios e pelo custeio de despesas pessoais.
Entretanto, para Toffoli, que foi acompanhado por Gilmar Mendes, não houve prova de que o deputado tenha vendido a função parlamentar, questão que para Fachin deveria ser debatida no processo e julgada ao seu fim. Foi outro caso encerrado precocemente.
Seria possível detalhar outras decisões na Lava Jato. O mesmo rigorismo é verificado na concessão de medidas investigativas por alguns ministros, como quebras de sigilos bancários ou buscas e apreensões.
O foro privilegiado de políticos é disfuncional e antirrepublicano, e a não investigação e o não processamento dos poderosos no Supremo atenta contra nossa Constituição
O contrassenso nessas situações de medidas investigativas é maior porque alguns ministros, para autorizá-las, exigem um nível de robustez de prova que só poderia ser atingido exatamente se as investigações fossem autorizadas; afinal, seu objetivo é justamente obter provas. Isso impede o aprofundamento das apurações.
O emprego por alguns ministros de rigor excessivo nas decisões iniciais, de recebimento da denúncia ou de investigação, mesmo diante de provas consistentes, contribui para fazer do Supremo um terreno árido para investigações e processos criminais se desenvolverem – inclusive na Lava Jato. Além do excessivo rigor em decisões iniciais de certos julgadores, há uma morosidade crônica dos casos criminais no STF, que frequentemente conduz à prescrição e consequente impunidade, o que abordarei no próximo artigo.
Algo realmente parece errado: o foro privilegiado de políticos é disfuncional e antirrepublicano, e a não investigação e o não processamento dos poderosos no Supremo atenta contra nossa Constituição. Isso é extremamente preocupante diante da importância do papel do STF na defesa dos princípios e valores fundantes de nossa democracia. Tal papel inclui o poder-dever de responsabilizar e afastar da vida pública, de modo tempestivo, nossos principais governantes quando traem a confiança depositada nas urnas pela sociedade e praticam atos que se afastam do melhor interesse da população com o objetivo de desviar recursos ou arrecadar propinas que influenciam fraudulentamente eleições.
Isso jamais acontecerá se os casos forem encerrados precocemente ou forem excessivamente demorados. A sociedade brasileira espera e merece mais de sua corte máxima nos casos envolvendo políticos com foro privilegiado.
Deltan Dallagnol, procurador da República, é coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba.
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