Balanço preliminar aponta que 20 menores foram assassinados durante motim de policiais militares no Ceará

Uma comissão permanente vai ser criada para monitorar os processos abertos contra os PMs amotinados no Ceará — Foto: Letícia Lima/SVM

Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública são parciais e se referem aos nove primeiros dias de paralisação, que durou 13 dias. G1 ouviu relatos de familiares de vítimas da violência ocorridas durante a paralisação dos policiais.

Um balanço preliminar aponta que, nos nove primeiros dias do motim de parte dos policiais militares do Ceará, 20 menores de idade morreram — entre eles, uma bebê de 1 ano e 11 meses e um adolescente de 12 anos.

A paralisação durou 13 dias – de 18 de fevereiro a 1º de março. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará divulgou dados contabilizados até o 26 de fevereiro. Nesse período, ocorreram 225 assassinatos em 54 dos 184 municípios do Ceará. As mortes de menores de idade representam 9% desse total.

No domingo (1º), os policiais militares amotinados votaram por encerrar a paralisação mesmo sem anistia. A desocupação dos batalhões aconteceu nesta segunda-feira (2).

Desde o início do motim, o crescimento nas mortes violentas foi de 138% na comparação com os primeiros 25 dias de fevereiro de 2019.

A média de homicídios entre 1º de janeiro e 17 de fevereiro — dia anterior à paralisação dos PMs — era de oito por dia. Já entre 18 e 26 de fevereiro, a média diária saltou para 24,5.

Conforme o sociólogo e coordenador da equipe técnica do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência Thiago de Holanda, é preciso haver uma apuração rigorosa de cada uma destas mortes. O comitê levantou que, se comparados iguais períodos de 2019 e 2020, houve aumento de 435% nos assassinatos de adolescentes.

“Como a dinâmica destas mortes aconteceu? O que colocamos enquanto comitê é que quando essas mortes acontecem, elas recaem nos territórios mais vulneráveis, costuma ser na periferia, onde os jovens vivem neste contexto de mais vulnerabilidade. Até o momento, temos poucas informações sobre estas mortes. É preciso uma investigação rigorosa”, afirmou o sociólogo.

Ainda segundo o comitê, considerando critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) – que estabelece a adolescência até os 19 anos – foram 55 crianças e adolescentes assassinados em um período de nove dos 13 dias de motim.

Entre as vítimas estão as irmãs Adrine da Silva Mendes, 17, e Andreza da Silva Mendes, de 18 anos, mortas a tiros em 21 de fevereiro, na cidade de Pacatuba. Elas conversavam na calçada de casa quando foram perseguidas e baleadas por homens armados. As duas foram atingidas quando já estavam no quintal. Nenhuma delas tinha passagem pelo Sistema Socioeducativo ou antecedentes criminais.

Raio X

A partir dos dados gerais, o G1 levantou que 94,22% das vítimas de assassinato são do sexo masculino e 5,78% do sexo feminino. Dentre os crimes, foram registrados 221 homicídios dolosos, três latrocínios e um feminicídio. A maior parte destas vítimas se encontrava na faixa etária dos 20 aos 29 anos (45,78%).

As estatísticas ainda apontam que 215 mortes foram causadas por armas de fogo, sete com arma branca e três com outros meios não especificados.

As cidades de Fortaleza (78), Caucaia (21), Juazeiro do Norte (13) e Maracanaú (12) registraram os maiores números de assassinatos.

Bebê assassinado

A vítima de assassinato com menor idade foi uma bebê de 1 ano e 11 meses, morta junto ao pai, na casa da família em Beberibe, no litoral leste do Ceará.

Já a vítima mais velha foi Sebastião Luiz de Vasconcelos, de 64 anos, morto em Jijoca de Jericoacoara, também no interior do estado.

A bebê foi identificada como Jorgiane dos Santos Xavier. Ela e o pai, o pedreiro, pescador e agricultor Francisco Jorge Gomes Xavier, de 39 anos e sem antecedentes criminais, foram assassinados na madrugada do dia 22 de fevereiro de 2020.

Para a família, Francisco foi supostamente confundido com um desafeto dos criminosos. A mãe e avó das vítimas, Liduína Xavier, contou que ouviu o barulho dos cinco tiros.

“Eu escutei um carro passar, mas não saí para olhar. Depois, eu escutei uma pancada enorme da porta sendo aberta. Aí, eu escutei o barulho de cinco tiros. Quando eu cheguei, ele [Francisco] estava na rede. Eu ainda chamei pelo apelido dele, Neguinho, mas ele não falou nada. Depois, eu fui até a rede da minha neta e vi uma poça de sangue debaixo da rede dela. Nunca mais vou esquecer o que vi”, relatou a agricultora Liduína Xavier, mãe de Francisco e avó de Jorgiane.

“Eu nunca mais vou esquecer esse momento, nem se eu saísse desse lugar. Eles estavam dormindo um do lado do outro. Eu não consigo imaginar o porquê, já que ele não tinha inimigo e não era envolvido em nada. Como que posso pensar em uma causa da morte?”, continuou a agricultora.

Para Hiran Costa, primo das vítimas, “os criminosos tiveram mais audácia em fazer o ato com os policiais paralisados”.

Segundo Costa, mesmo após os homicídios “a polícia demorou um pouco a chegar à casa, e os corpos só foram liberados rápidos porque um político ajudou fazendo a mediação”.

De acordo com a Secretaria da Segurança, um inquérito policial foi instaurado para investigar o duplo homicídio.

Outro crime ocorrido durante o motim que tomou grande repercussão foi a morte da jovem Ângela Christiany Nobre Palácio, de 24 anos. Ela foi morta em um posto de combustíveis, na madrugada do dia 25 de fevereiro. Ela tentava fugir de um tiroteio e ficou na mira de um criminoso encapuzado que perseguia outra pessoa.

Além dela, outras 102 pessoas assassinadas tinham entre de 20 a 29 anos de idade.

Maurício Filho, primo de Christiany, contou que ela deixou marido e dois filhos: “Não tem como dizer a falta que ela deixa na nossa família. Ela planejava viajar, estava tudo se encaminhando bem na vida. Ela estava no posto comprando cerveja para comemorar o aniversário do irmão e aconteceu isso”.

Feminicídio

Desideria Gomes, comerciante de 23 anos, foi morta a facadas pelo marido em sua casa, em Juazeiro do Norte — Foto: Reprodução
Desideria Gomes, comerciante de 23 anos, foi morta a facadas pelo marido em sua casa, em Juazeiro do Norte — Foto: Reprodução

O único caso registrado como feminicídio durante os dias de paralisação vitimou Desideria Nascimento Gomes, de 21 anos. O crime aconteceu em 26 de fevereiro, no bairro Novo Juazeiro, em Juazeiro do Norte, e tem como principal suspeito Cícero Fernandes Januário, marido da comerciante.

O G1 apurou que o corpo de Desideria tinha sinais de estrangulamento – o crime foi presenciado pelo filho de um ano do casal e pela irmã de sete anos da vítima. O G1 localizou a defesa do acusado.

Deisiane Oliveira, outra irmã da vítima, contou que Desideria pediu ajuda e saiu gritando na rua pedindo socorro aos vizinhos “mas, infelizmente, eles ficaram com medo de acontecer alguma coisa com eles”.

A irmã ainda contou que o relacionamento do casal era conturbado e que as discussões ficaram mais intensas no carnaval: “Ele não queria que ela saísse, ela tinha que ir do trabalho para casa e de casa pro trabalho”, afirmou Deisiane.

O que diz a secretaria

Nos primeiros nove dias do motim dos policiais militares, a Secretaria da Segurança Pública do Ceará divulgou boletins com os números de assassinatos. Entre 19 e 24 de fevereiro, por exemplo, o estado registrou 170 homicídios, uma média de 24 mortes por dia.

Em 27 de fevereiro, contudo, a pasta informou que deixaria de divulgar o balanço e que, em breve, forneceria os dados consolidados de todo o mês de fevereiro.

Mesmo sem as estatísticas finais, os 225 crimes violentos contabilizados durante os nove dias paralisação de PMs superou a conta de homicídios de todo o mês de fevereiro de 2019.

Fim do motim

O acordo que permitiu o fim do motim dos policiais militares foi formalizado e assinado na manhã desta segunda, na Procuradoria Geral de Justiça (PGJ), no Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).

Uma comissão permanente vai ser criada para monitorar os processos abertos contra os PMs amotinados e acompanhar reivindicações da categoria que ainda não foram objeto de diálogo. Será “uma comissão permanente para vocalizar os interesses dessa categoria”, disse o procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro.
Assim como a equipe que negociou o fim do motim, o grupo será formado por representantes dos três poderes, além de nomes indicados pelo Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE). A comissão anterior será dissolvida.

Governador garante acordo

Em pronunciamento em uma rede social na manhã desta segunda, o governador do Ceará, Camilo Santana, reafirmou que todos os processos abertos contra pessoas que desrespeitaram as leis durante o motim vão ser conduzidos respeitando o devido processo legal.

“Ao final desse lamentável episódio, reafirmo que todos os processos abertos contra pessoas que infringiram a lei serão conduzidos respeitando o processo legal, sem possibilidade de anistia para quem praticou crimes e ameaçou a segurança da nossa população. Ninguém está acima da lei”, afirmou o governador.

Durante o evento de assinatura, o presidente da OAB-CE, Erinaldo Dantas, afirmou que os militares precisam trabalhar motivados. Destacou que os representantes que sentaram para negociar o fim da paralisação estavam imbuídos em resolver o problema.

“Queremos que vocês [militares] trabalhem motivados, com dignidade e respeito da população”, disse Dantas. “Dou meu testemunho pessoal que os policiais não quiseram estar naquela situação, queriam encerrar esse conflito”, reforçou.

Já o procurador do Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE) Oscar Costa Filho destacou que prevaleceu o bom senso e que a atual comissão vai ter a missão de acompanhar a execução do que foi acordado.

“Essa comissão vai ter a missão permanente de acompanhar a execução do que foi acordado. O que foi pactuado tem que ser executado. Nesse momento de acompanhamento, é importante que uma vez atendidos os anseios da população, se busque ter uma escuta para os apelos da corporação. É um processo que vai continuar aqui, afirmou.

Policiais militares que estavam amotinados desocuparam os batalhões de Fortaleza e do interior do Ceará nesta segunda. Muitos carros da polícia que foram danificados e tiveram os pneus esvaziados permaneceram no 18º Batalhão da PM, no Bairro Antônio Bezerra, na capital, para passar por reparos antes de serem rebocados. No interior, veículos que estavam parados já circulam nas ruas.

Borracheiro enche pneus de viaturas danificadas durante paralisação da polícia em Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM
Borracheiro enche pneus de viaturas danificadas durante paralisação da polícia em Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Escola

A escola que fica ao lado do batalhão e foi ocupada pelos policiais também foi liberada nesta segunda.

A Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor) informou que realizará uma reunião com a Escola José Bezerra de Menezes para definir o calendário de reposição das aulas, que devem recomeçar nesta terça-feira (3).

Carros da polícia são rebocados de batalhão em Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM
Carros da polícia são rebocados de batalhão em Fortaleza — Foto: Fabiane de Paula/SVM

Patrulhas no interior

Na cidade de Sobral, a base da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer) e do Batalhão de Policiamento de Rondas Intensivas e Ostensivas (BPRaio), considerado um dos batalhões de elite da PM, também foi desocupada pelos policiais durante a madrugada desta segunda. O local estava fechado pelos PMs desde o dia 21 de fevereiro.

Carros da polícia voltaram a circular nas ruas de Sobral após o fim da paralisação. Apesar disso, alguns veículos que foram danificados continuam com os pneus esvaziados.

O coronel Colares, comandante do 3° BPM de Sobral, afirmou que todo efetivo da cidade está atuando nas ruas nesta segunda-feira. O coronel disse ainda que o comando da PM realiza um o levantamento de equipes e viaturas disponível. “O trabalho está normal na cidade”, disse.

Já em Iguatu, os carros da polícia tiveram os pneus recalibrados e parte dos veículos já saíram para as ruas. O trecho da Rua Adeodato Matos, no entorno do 10º Batalhão da PM, também liberado.

Fim da paralisação
O motim dos policias terminou na noite deste domingo (1º), após os policiais militares que seguiam amotinados no 18º Batalhão da PM votaram por terminar o movimento. Os PMs aceitaram a proposta definida no mesmo dia pela comissão especial formada por membros dos três poderes no Ceará, assim como por representantes dos agentes.

Um dos pontos do acordo é que os policiais retornem aos postos de trabalho nesta segunda-feira.

A proposta aceita pelos policiais tem os seguintes tópicos:

  • Os policiais terão apoio de instituições que não pertencem ao Governo do Estado, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria Pública, Ministério Público e Exército;
  • Os policiais terão direito a um processo legal sem perseguição, com amplo direito a defesa e contraditório, e acompanhamento das instituições mencionadas anteriormente;
  • O Governo do Ceará não vai realizar transferências de policiais para trabalhar no interior do estado em um prazo de 60 dias contados a partir do fim do motim;
  • Revisão de todos os processos adotados contra policiais militares durante a paralisação (entenda os processos abaixo);
  • Garantia de investimento de R$ 495 milhões com o salário de policiais até 2022;
  • Desocupação de todos os batalhões onde havia policiais amotinados até 23h59 deste domingo;
  • Retorno aos postos de trabalho às 8h de segunda-feira.

As propostas foram apresentadas pelo ex-deputado federal Cabo Sabino, líder dos policiais amotinados e que tem mandado de prisão em aberto por motim. “Vocês acabaram de assinar minha demissão”, afirmou Sabino, após a votação.

Principal reivindicação dos policiais para encerrar o motim, a anistia aos militares envolvidos na manifestação não foi atendida pelo Governo do Estado.

Desde o início do motim dos policiais, o número de homicídios no Ceará teve um forte aumento. O crescimento nas mortes violentas foi de 138% quando comparado com os primeiros 25 dias do mês de fevereiro de 2019 e 2020.

Resumo:

Confira matéria do site G1.

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