Comecemos pelos caveats: “Toda geração se imagina mais inteligente do que aquela que a precedeu e mais sábia do que aquela que vem em seguida”, disse George Orwell; “O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana”, constatou David Hume; “Toda geração ri do antiquado, mas segue religiosamente o novo”, disse Henry David Thoreau.
Dito isso, vamos lá: parece inegável que algo “deu ruim” com essas novas gerações. O politicamente correto vem causando um estrago enorme na formação da juventude. Temos os “espaços seguros”, as “microagressões”, o “lugar de fala”, a “apropriação cultural” e outras bobagens do tipo, tudo isso asfixiando a liberdade individual e até a imaginação moral. Claro que a paranoia chegaria ao carnaval.
Não é de agora que fantasias suscitam debates acalorados. Atores famosos de Hollywood já foram alvos da patrulha politicamente correta também. E como o Brasil só resolve importar o que não presta dos Estados Unidos, eis que essa afetação toda chegou ao nosso irreverente carnaval, festa que costumava ser marcada justamente pela ousadia em relação aos valores estabelecidos.
A “problematização” da vez é a fantasia de índio de Alessandra Negrini (pausa: eu acharia ainda melhor se ela se fantasiasse de recém-nascido, pois acredito que os índios, com pudor, já ofuscam em demasia aquilo que a natureza deu em excesso a alguns). O caso gerou “polêmica”, é mole?
Fantasia de índio não pode mais (a menos que seja o namorado da Fátima Bernardes, como vemos abaixo). De “nega maluca” então, nem pensar! De mulher se for homem é claro desrespeito: só vale “virar” mulher se for trans mesmo, de forma oficial. Qualquer coisa que remeta às “minorias” está vetada. Concluo que só pode ofender a maioria: única fantasia liberada é ridicularizar Jesus Cristo!
Eu não vou pular carnaval, mas se fosse, minha fantasia seria assim: índio trans vegano ecoterrorista. Uma mistura de cacique Raoni, Laerte Coutinho e Greta Thunberg. E carregando uma faixa dizendo “Caguei para o ‘cancelamento’ dos politicamente corretos”. Sim, pois agora tem essa coisa patética de “cancelar” o outro.
Tudo isso é muito cansativo, mas sintomático. Vivemos numa época de excessiva frescura, de histeria descontrolada, de afetação de virtude falsa e de extrema covardia. Poucos têm coragem de remar contra a maré, de fincar o pé firme e gritar “chega!”, “basta!”, “daqui não passa!”. É hora de chamar a garotada à responsabilidade e à reflexão.
Foi o que fez Eduardo Affonso num texto sensacional em que define essa geração como a Raudério. O nome é perfeito, em referência àquela que é o melhor ícone dessa turma, Greta Thunberg. A pirralha mimada, de família rica num dos países mais prósperos do planeta, aponta dedos, exige respostas e atitudes, e questiona, com olhar medonho e expressão distorcida pelo ódio: “como ousam?!”. Em inglês, “how dare you?!”. A Geração Raudério tem muito o que aprender com a vida, mas um toque dos “tios” se faz necessário. Parabenizo Affonso pelo bom trabalho, portanto. Eis alguns trechos:
Minha geração (a Coca Cola, apesar de eu preferir Matte Couro), foi a mentora intelectual disso daí. Nós é que começamos a exigir (“Cadê a minha Calói?”, “Compre Baton, compre Baton, compre Baton!”) em vez de pedir.
[…] Reprimidos, consumistas, sem noção de estética, resolvemos dar aos filhos tudo que não tivemos: videogueime, celular, televisão no quarto, quarto com chave na porta e até o direito de se trancar com coleguinha no quarto.
Deu nisso.
– Raudério entrar no meu quarto sem bater na porta?
– Raudério colocar bêicon na farofa, cebola no vinagrete, açúcar no café?
– Raudério votar de acordo com as suas convicções, não com as minhas?
O rauderismo também pode vir a ser conhecido como a Geração Barulhenta, da indignação seletiva. Talvez por lhe faltar uma guerra de verdade como a Guerra Civil Espanhola, a da Coreia, a do Vietnã, a de Biafra.
Fascistas e comunistas queimaram livros – os raudérios querem queimar palavras. Implementar a Novilíngua. Viver um cosplêi de membro da Resistência Francesa, mas sem a boina e com um cigarro mais alternativo no canto dos lábios.
Raudérios, o tio aqui foi censurado, aos 11 anos, por fazer na escola um cartaz de Dias das Mães com uma foto da Leila Diniz grávida e de biquíni. Era 1970, governo Médici, ouviram falar?
O tio aqui comprava o jornal assim que a banca abria para não correr o risco de chegar lá e o “Opinião” e o “Movimento” terem sido recolhidos. O tio aqui carregou faixa em manifestação pela Anistia, participou dos comícios das Diretas. O tio não é fascista. O tio, inclusive, sabe o que é fascismo (porque estudou), o que é ditadura (porque passou toda a infância, adolescência e parte da vida adulta sob uma), o que é censura (porque viu “Laranja Mecânica” com bolinha preta saltitando na tela para cobrir os pentelhos dos artistas).
Ditadura não é nada disso que vocês estão pensando. Podem acreditar em mim: o tio tem lugar de fala.
Affonso conclui: “Não adianta vir nos fuzilar com o olhar: crescemos acompanhando fuzilamentos muito mais concretos, os dos dissidentes cubanos no Paredón e dos que tentavam cruzar o Muro de Berlim. O mundo hoje é muito mais seguro, justo e próspero do que era 50 anos atrás”.
E eis o resumo da ópera bufa: essa turma, que nasceu na época mais próspera, livre e pacífica de todos os tempos, insiste em se enxergar como vítima, como oprimida, como coitadinha. Em boa parte, claro, é culpa dos pais, ou seja, das gerações anteriores. Nós deixamos a coisa chegar a esse ponto ridículo. Cabe a nós, portanto, lutarmos para reverter esse quadro lamentável, inspirar mais confiança nos jovens (não confundir com cursinho de autoajuda), delegar mais responsabilidade e resgatar a maior virtude de todas, a coragem. Sem ela, nada feito.
Tenha a coragem ao menos para desafiar a patrulha politicamente correta neste carnaval, caro leitor. Mande àquele lugar todos os insuportáveis censores que reclamarem de sua fantasia.
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