Os caminhos para a prisão em segunda instância

A PEC 199 se baseia em uma ideia de Cezar Peluso, ex-presidente do STF.| Foto: Carlos Humberto/STF

Depois de decepcionar duplamente, no ano passado, os brasileiros que anseiam por leis mais duras contra a corrupção – com a aprovação de uma absurda lei de abuso de autoridade, e com a forte desidratação do pacote anticrime do ministro Sergio Moro –, o Congresso tem uma chance de fazer a coisa certa em 2020, já que o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) listou entre as prioridades do Legislativo a aprovação da prisão após condenação em segunda instância. A pressão popular foi intensificada após o julgamento do Supremo Tribunal Federal que derrubou a medida, contrariando o entendimento que vigorou no país desde a redemocratização, com um hiato entre 2009 e 2016. Com isso, parlamentares apresentaram projetos de lei e propostas de emenda à Constituição, ou resgataram textos antigos que tratavam do tema. Esta multiplicidade de projetos, no entanto, não pode atrapalhar o estabelecimento de uma estratégia eficaz para trazer de volta ao Brasil uma prática que já é adotada em praticamente todas as democracias sólidas do mundo, onde vigora plenamente o Estado Democrático de Direito.

O texto divulgado pelo Senado dá a entender que os textos com mais chance de prosperar são o PLS 166/2018, que já passou pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado em dezembro de 2019, e a PEC 199/2019, que está em comissão especial na Câmara. O documento afirma que haveria um acordo para que os deputados votassem a PEC 199 até 15 de abril e, se isso não ocorresse, o Senado seguiria adiante com o PLS 166. Se o Congresso realmente estiver tratando os textos desta forma, buscando aprovar um ou outro, estará cometendo um erro grave, e já há vozes, como a da senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da CCJ do Senado, defendendo que as duas propostas tramitem simultaneamente.

Qualquer das PECs terá servido a contento se cumprir o objetivo de consagrar na Constituição a possibilidade de se cumprir a pena a partir da condenação em segunda instância

Há um motivo evidente para isso: o PLS 166/2018 pretende mudar o Código de Processo Penal, e a PEC 199/2019 alteraria a Constituição Federal. É preciso lembrar que, no julgamento em que o Supremo derrubou a prisão em segunda instância, o centro da questão estava no artigo 283 do CPP, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Foi ao considerar esse artigo constitucional que os ministros vedaram a possibilidade de alguém ir para a cadeia após condenação em segunda instância (a não ser em casos de prisão temporária ou preventiva, que continuam permitidas). É preciso mudar tanto o CPP quanto a Constituição, pois alterar um e deixar intacto o outro é deixar a porta aberta para a confusão jurídica, terreno fértil para decisões que consagrem a impunidade.

Se no caso do CPP é bastante óbvio que as mudanças precisam ocorrer no artigo 283, há mais controvérsias quanto ao melhor caminho para alterar a Carta Magna. A PEC 199 ressuscita uma ideia apresentada em 2011 pelo então ministro do STF Cezar Peluso, e altera os artigos 102 e 105 da Constituição. Os recursos das ações penais apresentados aos tribunais superiores passariam a ser “ações revisionais”, com existência autônoma. A ação penal propriamente dita terminaria na segunda instância – nos Tribunais Regionais Federais ou nos Tribunais de Justiça estaduais. Na prática, o trânsito em julgado da ação penal ocorreria ali, e não mais com o esgotamento de todos os recursos no STJ ou STF. Em seu favor, a proposta contempla o fato de a análise da culpa do réu terminar na segunda instância, já que os tribunais superiores analisam apenas possíveis irregularidades no processo. Depois de uma audiência na Câmara, na última quarta-feira, cresceu a possibilidade de a regra valer para todos os tipos de ações, não apenas as penais. Peluso, que participou da audiência, afirmou que mudar o trânsito em julgado apenas nas ações penais poderia ser visto como casuísmo.

Outra PEC apresentada no Senado, a 5/2019, do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), inclui um novo inciso no artigo 93 da Constituição, determinando que “a decisão condenatória proferida por órgãos colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos”. Suas vantagens são permitir que a prisão ocorra após a condenação em segunda instância, ao mesmo tempo em que evita as discussões decorrentes da mudança no momento em que ocorre o trânsito em julgado.

Em comum, ambas as PECs deixam intacto o inciso LVII do artigo 5.º da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. As primeiras tentativas de mudar a Constituição para permitir a prisão em segunda instância miravam justamente esse trecho, mas, depois que ministros do STF disseram considerar inaceitável alterar este artigo da Carta Magna, os parlamentares buscaram outras opções, mudando outros trechos da Constituição, para evitar que as PECs naufraguem por uma suposta ofensa a cláusula pétrea. Foi o caso da própria PEC 199, que originalmente mudava o artigo 5.º, mas acabou alterada por seu autor, Alex Manente (Cidadania-SP). Mas é preciso questionar: o que exatamente o constituinte queria garantir aos réus no inciso LVII? O devido processo legal e a presunção de inocência, não a impunidade decorrente de infinitos recursos. A prisão após condenação em segunda instância não anula nenhum desses direitos, e por isso até mesmo uma alteração no inciso LVII do artigo 5.º não seria uma violação de cláusula pétrea, continuando a ser uma estratégia válida.

A essa altura, podemos recorrer à célebre frase de Deng Xiaoping: “Não importa a cor do gato, importa que pegue o rato” – qualquer das PECs terá servido a contento se cumprir o objetivo de consagrar na Constituição a possibilidade de se cumprir a pena a partir da condenação em segunda instância, e todas elas parecem suficientemente sólidas para resistir a eventuais questionamentos sobre sua constitucionalidade. Elas respeitam a intenção original do constituinte, que era a de preservar a presunção de inocência e o devido processo legal, e não a de facilitar a impunidade ou o andamento infindável dos processos, e nem o de cristalizar numa “quarta instância” o marco para que alguém finalmente comece a acertar suas contas com a sociedade. A escolha do Legislativo, até agora, tem sido pela PEC 199, que não é perfeita, mas tem sua lógica interna, e por isso os brasileiros cansados de corrupção e impunidade esperam que ela prospere sem desfigurações.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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