O presidente Jair Bolsonaro reclamou no ano passado que o Congresso queria torná-lo uma espécie de “rainha da Inglaterra” – que, por causa do sistema parlamentarista britânico, reina mas não governa. A declaração foi dada em 22 de junho, quando Bolsonaro anunciou que iria vetar o trecho do projeto do Legislativo que transferia do presidente para os parlamentares o poder de fazer indicações para agências reguladoras.
Não foi a única vez que Câmara e Senado assumiram o protagonismo legislativo, ao mesmo tempo em que o presidente reduzia a participação dos parlamentares na indicação de aliados para cargos no governo. Em 2019, o Congresso buscou controlar a pauta legislativa, barrou iniciativas do Executivo e encaminhou seus próprios projetos em questões caras para o governo. E isso pode se repetir a partir de agora, quando o Congresso retoma seus trabalhos após o fim do recesso parlamentar.
Além do projeto das agências reguladoras, a Gazeta do Povo listou outras oito situações em que o Congresso tomou decisões por conta própria e fez Bolsonaro de “rainha da Inglaterra”. A reportagem também traz outras três situações em que isso pode voltar a ocorrer em 2020.
Casos em que o Congresso fez Bolsonaro de rainha da Inglaterra em 2019
1. Decreto das armas
Uma das principais bandeiras da campanha de Jair Bolsonaro, a flexibilização das regras para aquisição, posse e porte de armas virou novela. Depois de determinar por decreto a alteração da legislação, aumentando o rol de pessoas que poderiam pedir o porte e ampliando a posse na área rural, o governo viu sua medida ser rejeitada pelo Senado. O Planalto então recuou, revogou seu próprio decreto e editou outros três sem os pontos considerados polêmicos. Também apresentou um projeto de lei para que as propostas excluídas dos novos decretos fossem discutidas no Congresso.
2. Demarcação de terras indígenas
Outra proposta cara a Bolsonaro que empacou por causa do Congresso foi a transferência da responsabilidade pela demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura. A primeira tentativa, por meio da Medida Provisória (MP) 870, foi rejeitada em maio, quando o Legislativo determinou que a demarcação retornasse à Funai, e que a Funai voltasse a estar subordinado ao Ministério da Justiça (a MP estabeleceu a transferência do órgão para a Agricultura).
O presidente enviou nova MP em junho determinando novamente que a demarcação das terras indígenas fosse submetida à pasta da Agricultura. Mas o Senado devolveu a medida provisória, sem apreciá-la, argumentando que a Constituição impede que uma MP rejeitada seja reeditada no mesmo ano. A medida provisória também foi derrubada liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal.
3. Abuso de autoridade
Eleito com o discurso de combate à corrupção e de apoio à Lava Jato, Bolsonaro viu (sem ter muito o que fazer) o Senado desengavetar e aprovar o projeto de lei que pune o abuso de autoridade por parte de integrantes do Judiciário, do Ministério Público e das polícias. A proposta, que já havia sido aprovada na Câmara durante o governo do ex-presidente Michel Temer, era criticada por integrantes da Lava Jato e pelo ministro Sergio Moro. Segundo eles, o projeto cria constrangimento para juízes, promotores, procuradores e policiais investigarem e punirem corruptos. Bolsonaro vetou 33 dispositivos do projeto. Mas 18 vetos foram derrubados pelo Parlamento.
4. Transferência do Coaf para Moro
Uma das exigências do ex-juiz Sergio Moro para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública era ter sob sua responsabilidade o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – que até o governo Temer era subordinado ao Ministério da Fazenda. A transferência foi contemplada na proposta de reforma administrativa enviada por Bolsonaro ao Congresso. Mas deputados e senadores barraram a mudança e mantiveram o Coaf no Ministério da Economia, que sucedeu o Ministério da Fazenda. Mais adiante, o próprio Bolsonaro decidiu transferir o Coaf para o Banco Central. Desta vez o Congresso aprovou a proposta do governo.
5. Excludente de ilicitude
O excludente de ilicitude – mecanismo para impedir a punição de policiais que matam no exercício de sua função – foi uma das promessas de campanha de Bolsonaro. A proposta foi incluída pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, no pacote anticrime que enviou ao Congresso. Mas o dispositivo foi retirada do projeto pelos deputados antes mesmo de chegar ao plenário. O pacote de Moro, aliás, perdeu uma série de outros pontos propostos pelo governo e viu ser incluído nele propostas que não faziam parte do projeto original – tal como a criação do juiz de garantias.
6. Orçamento impositivo das emendas do Congresso
Um dos objetivos do governo Bolsonaro é desengessar o orçamento para ter maior autonomia e flexibilidade no uso de recursos públicos. Mas, exatamente no sentido contrário, o Congresso tirou da gaveta em 2019 uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que estava parada desde 2015 e aprovou a ampliação do chamado orçamento impositivo. Com a mudança, o governo passou a ser obrigado a executar todas as emendas parlamentares ao orçamento e não só as emendas individuais, como ocorria anteriormente. A medida obriga o governo a executar todas as emendas das bancadas estaduais no Congresso – que somam cerca de R$ 3 bilhões por ano.
7. Fim da obrigação de publicar balanço em jornais impressos
A medida provisória do presidente Jair Bolsonaro que desobrigava empresas de publicar seus balanços em jornais impressos perdeu a validade sem que o Congresso a apreciasse. A decisão dos parlamentares de não votar a MP foi deliberada. Na comissão mista do Congresso que analisou a medida provisória, a maioria dos parlamentares foi contra. No entendimento de grande parte dos congressistas, a MP era parte da briga do presidente com parte da imprensa. Como a publicação dos balanços é uma fonte de receita para os jornais, a desobrigação afetaria as finanças de veículos de comunicação.
8. Sigilo das informações
Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro, editada ainda em janeiro de 2019, sofreu revés na Câmara. O decreto que ampliava o rol de autoridades que poderia classificar documentos oficiais como secretos (15 anos de sigilo) e ultrassecretos (25 anos de sigilo) foi rejeitado pela Câmara. Bolsonaro revogou a proposta antes de ela ser discutida pelo Senado.
Propostas de Bolsonaro que podem ser ignoradas pelo Congresso em 2020
1. Reforma tributária: do Congresso ou do governo?
O governo Bolsonaro prometeu ao longo de 2019 enviar ao Congresso um projeto de reforma tributária. Mas, até agora, não apresentou sua proposta – embora assegure que vai fazer isso em breve. Enquanto isso, Câmara e o Senado já estão discutindo seus próprios projetos para mudar o sistema de cobrança de impostos no país. A proposta da Câmara teve até o apoio da oposição e passou rapidamente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
2. Fim do monopólio da UNE na confecção da carteira estudantil
A Medida Provisória 895, editada por Bolsonaro em 6 de setembro, criou a Carteirinha de Estudante Digital e acabou com o monopólio da União Nacional dos Estudantes (UNE) na emissão do documento. A MP determina que qualquer estudante pode solicitar sua identificação estudantil por meio de aplicativos disponíveis em lojas virtuais e passa a ter direito, a custo zero, a uma carteirinha que pode ser usada para solicitar, por exemplo, a meia-entrada em eventos culturais e esportivos.
A mudança, contudo, possivelmente não terá vida longa. Em princípio, Câmara e Senado não vão apreciar a MP 895 – nem sequer iniciaram os trabalhos da comissão que deveria avaliar a norma. Com isso, a medida provisória perderá validade no próximo dia 16 de fevereiro. E a UNE vai reassumir o monopólio de emissão das carteirinhas de estudante.
3. Mudanças no Código de Trânsito
Bolsonaro levou pessoalmente ao Congresso, em 2019, uma proposta para alteração no Código de Trânsito. Mas, na comissão especial da Câmara criada para analisar a proposta, o projeto recebeu um substitutivo com mais de 100 alterações ao que havia sido proposto pelo governo. Os deputados alteraram a ideia de Bolsonaro para subir de 20 para 40 pontos na CNH o limite para a suspensão do direito de dirigir. Eles também decidiram manter a punição para o motoristas que não utilizar a cadeirinha no transporte de crianças (o presidente queria acabar com a punição). A Câmara também tirou do projeto do governo a proposta de acabar com a exigência do exame toxicológico para motoristas profissionais. Bolsonaro chegou a reclamar das alterações.
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