Búfalos invadem igarapés dos muras, os índios corsários do Madeira
Chamados de “corsários” da Amazônia pelos viajantes europeus, no Brasil Colônia, os índios muras sempre foram exímios conhecedores de rios, igarapés e furos de água da região de Autazes, no Amazonas. Além disso, eles tinham o domínio de labirintos fluviais, que lhes permitiam ataques repentinos e exitosos. Hoje, enfrentam cercas elétricas e manadas de búfalos nos cursos d’água que banham suas aldeias.
Ao percorrer mais de 100 quilômetros de barco por braços de rio no território dos muras, o Estado encontrou comunidades acuadas pelos búfalos, tocados na água por capatazes e pistoleiros. Em cinco aldeias, os muras identificaram seis igarapés totalmente ocupados por fazendeiros e vigiados por homens armados. “Se a gente passar pelo canal, leva tiro”, afirma João Açosa Mura, cacique da Aldeia Trincheira.
No Igarapé da Boca do Taboca, só passa se pedir permissão aos pistoleiros. Búfalo pode passar, mas mura não pode.”
(João Açosa Mura, cacique da Aldeia Trincheira)
Caramuri, Munduruku, Boca do Taboca, Lago do Piranha e Pantaleão são alguns dos igarapés proibidos para o trânsito de muras. “Há certos cidadãos aqui que mantêm três seguranças armados para a gente não passar com as canoas”, conta o cacique. “No igarapé da Boca do Taboca, só passa se pedir permissão aos pistoleiros. Búfalo pode passar, mas mura não pode.”
Mais de 10 mil famílias sofrem com o avanço da criação desses animais, que também ocupam os igarapés Taquara e Munduruku. Neles, o Estado encontrou cercas elétricas. Para atravessar de canoa os igarapés, crianças precisam abaixar as cabeças, sob risco de choque. “A gente passa de teimoso, pois não quer se mostrar acuado”, diz João. Na outra ponta, fazendeiros acusam os índios de invadirem suas propriedades e de cortarem arame de cercas para matar os búfalos.
Quando uma manada de 20 a 30 animais com mais de uma tonelada cada entra num igarapé, levanta uma onda de lama do fundo do leito, deixando a água amarela e imprópria para o consumo. “Quando você vê água barrenta, percebe que tem problema: o búfalo está descendo o igarapé. É a água que a gente vai consumir porque não tem outra”, afirma o cacique de Trincheira, que cobra das autoridades a retirada dos animais. “Todo mundo sabe que merda de búfalo tira o oxigênio da água.”
Nas terras em volta da Aldeia Padre, os búfalos chegaram há dez anos. A água está imprópria para o consumo, assim como na vizinha Taquara, cercada por fazendas de criadores. “Os búfalos dos fazendeiros poluem nossas águas e comem nossos jacarés”, descreve Mariomar Mura, 49 anos, cacique da Aldeia Padre. “Os bichos acabam com tudo, por isso não tem mais camarão nem mato na beira do rio para peixe comer.”
Os índios reclamam que o poder público fechou os olhos para o problema. Ao Estado a Fundação Nacional do Índio (Funai) disse que a “presença” dos búfalos é “recorrente” na terra indígena por causa da localização geográfica das aldeias, muito próximas às fazendas. “A Funai realiza ações de fiscalização pelas quais os fazendeiros são solicitados a retirar os animais que adentrem em algum território indígena do povo mura”, destacou, em nota, a assessoria da fundação.
O Ministério Público Federal informou, por sua vez, ter recomendado a integrantes da associação dos fazendeiros que parem de constranger e ameaçar os índios. Os procuradores receberam até mesmo denúncia de que um índio foi ameaçado de morte. “Por envolver indícios da prática de ameaça, conduta ilegal prevista no Código Penal, o caso foi encaminhado para investigação criminal”, disse a assessoria do Ministério Público.
Se a gente inventa de colocar barco no igarapé, soltam pistoleiros em cima da gente.”
Edson Mura, vice-cacique da Aldeia Padre, Autazes
Vice-cacique da Aldeia Padre, uma das que foram abaladas pelos búfalos, Edson Mura, de 48 anos, reclama da situação. As aldeias vivem um clima de medo. “Se a gente inventa de colocar barco no igarapé, soltam pistoleiros em cima da gente”, relata Edson, em tom de desabafo.
Depois de navegar duas horas e meia a partir de Manaus pelo Rio Solimões, percorrer uma estrada de 115 quilômetros na floresta e cortar um braço do Madeira numa lancha voadeira, o Estado chegou ao território dos muras. Durante 14 horas, a equipe atravessou um labirinto de águas dentro da terra indígena. Ali, por igarapés, os búfalos estavam em cada curva. Ao longo da viagem, a embarcação que transportava os repórteres foi obrigada a desviar de mais de 20 manadas.
Existem dois tipos de criadores de búfalos em Autazes: o fazendeiro tradicional, que se instalou em volta do território dos muras, e o retirante, que vive em casa flutuante nos rios da região. Tradicionais e retirantes admitem a disputa pelos igarapés, mas culpam os muras por todos os confrontos, sob o argumento de que eles promovem ataques coordenados contra o rebanho.
Flávio Araújo Coelho, de 28 anos, é funcionário de uma fazenda encravada em território mura. “Cuido de 70 cabeças. Mas perdi recentemente dois bichos. Sumiram. A gente sabe que foi mura”, diz ele, apontando para a aldeia ao lado. Moreno jambo, cabelos escuros, Flávio é filho de pai e mãe índios. Mas não se reconhece como tal. Nas vilas ribeirinhas, os índios são vistos com preconceito e as aldeias são chamadas de “terras da Funai”. “Não tenho carteira de índio”, afirma Flávio Coelho.
O criador de búfalo Benedito Gomes, o Bené, de 57 anos, é outro mura que nega o parentesco. “Índio é quem vive em aldeia”, resume. Bené trabalhou em fazendas antes de ter a própria criação. Retirante, mora com sua família em uma casa flutuante sobre o Madeira, no território mura. O rebanho de 100 cabeças vive dentro e nas margens do rio. “Às vezes o bicho some e chega aqui cortado, atirado (vítima de tiro)”, diz.
Cada búfalo adulto chega a custar de R$ 3 mil a R$ 5 mil. Uma fêmea produz até 15 litros de leite por dia. “Conquistei meus bichos por meio de trabalho, mas os muras dão prejuízo. Já abateram quatro animais. Na água eles (os bichos) são bestas, todo mundo pega, com facão mesmo”, comenta Bené.
Conquistei meus bichos por meio de trabalho, mas os muras dão prejuízo.”
Benedito Gomes, criador de búfalo
O criador observa que o conflito com os muras está cada vez mais perigoso e confessa ter medo de morar ali, praticamente em cima do rio. “Quero evitar guerra. Se matam um animal meu, jogo a carcaça no fundo da água e pronto. O que me deixa triste é que até os bichos que estão parindo e os recém-nascidos são mortos.”
Para impedir que os búfalos chegassem ao território “inimigo”, Bené comprou 1.700 metros de cerca. Os animais, porém, continuaram avançando. Ele acusa os índios de cortar o arame para que os bichos atravessassem a cerca. Com isso, poderiam abatê-los. “A gente vai falar e eles ficam bravos”, protestou.
ASSASSINATO NO ENCONTRO DO AMAZONAS E DO TAPAJÓS
Ex-jogador do São Raimundo, de Santarém, o líder comunitário Haroldo de Silva Betcel, conhecido como Véu, passou o dia 18 de setembro de 2018 na cidade, vendendo açaí. À noite, pegou a moto e foi para o campo de futebol da comunidade do Tiningu, onde morava com a mulher e um filho de 12 anos. Assistia a uma partida com um prato de comida na mão quando, de repente, o capataz de uma fazenda chegou por trás e enfiou uma chave de fenda nas suas costas. Véu ainda correu atrás do agressor, aparentemente sem perceber que o ataque tinha sido profundo, deixando a ferramenta fincada em seu corpo.
Com mandado de prisão decretado, Doriedson Rodrigues da Silva, o matador, está foragido. Ele não constituiu defesa. O crime na disputa pelo Igarapé do Tiningu, a 60 quilômetros do encontro das águas barrentas do Rio Amazonas com as claras do Tapajós, seguiu o roteiro dos conflitos mapeados nesta série de reportagens. O igarapé foi fechado para irrigar fazendas, faltou água para consumo humano e, assim, começou a guerra.
A polícia não apontou envolvimento do patrão de Doriedson no crime. O fazendeiro tinha mandado seus peões cercarem o igarapé, impedindo o acesso dos moradores do Tiningu à água.
Dias antes do assassinato, a Justiça de Santarém havia determinado que a fazenda onde o matador trabalhava “cessasse” as sabotagens. O dono da propriedade não foi localizado para comentar o caso.
Numa manhã de dezembro passado, o Estado esteve no Tiningu. Depois de descer o Amazonas de barco, de Manaus a Santarém, numa viagem de 36 horas, a equipe pegou uma estrada de terra de 50 quilômetros para chegar ao quilombo no sopé de uma montanha coberta de floresta. A comunidade fica entre os rios Tapajós e Amazonas. Ali vivem 80 famílias.
Antes de entrar no território quilombola, no entanto, pastagens secas e plantações de soja predominam. Santarém virou um “case” do desenvolvimento do agronegócio na Amazônia, mas também uma das regiões onde o desmatamento mais cresceu na última década. A mata nativa encolhe a cada dia, enquanto se multiplicam as serralherias. As áreas de floresta se limitam hoje a territórios indígenas e quilombolas e terras de proteção ambiental.
O líder da comunidade do Tiningu, Benedito Mota, o Bena, de 60 anos, observa que o quilombo está cercado por madeireiros, grileiros e donos de serrarias. Na lista de ameaçados de morte, ele relata que as matas ao redor da comunidade guardam as nascentes do Tiningu. “É na disputa injusta por este igarapé que nosso irmão morreu”, diz Bena, numa referência a Véu.
O plantio irrigado se intensificou nessa região da Amazônia. Os conflitos também. A Polícia Civil de Santarém contabiliza mais de cem Boletins de Ocorrência registrados por causa da briga por água, no último ano.
O criminoso já tinha tramando aquilo ali há vários dias, amolou bem a chave de fenda.”
Benedito Mota, o Bena, líder comunitário, Tiningu, Santarém
A disputa pelo Tiningu virou guerra declarada entre fazendeiros e quilombolas quando o curso da água foi desviado. O rio deixou de chegar à comunidade. Em uma discussão motivada por esse confronto, segundo a Polícia Civil, o capataz da fazenda chamou Véu para a briga e desafiou líderes quilombolas. Bena conta que o primeiro embate ocorreu na comunidade vizinha, a Murumuru. “O capataz foi falar com outra liderança, que era o tio do Haroldo. Ali eles tiveram uma primeira discussão. Até que chegou o momento de covardia e ele matou o Véu”, afirma Bena. “O criminoso já vinha tramando aquilo ali há vários dias, amolou bem a chave de fenda.”
É difícil para a agente de saúde Ilcecleia Gomes Bectel, de 38 anos, esquecer a imagem do marido ensanguentado. Ela costuma ir ao cemitério pelo menos uma vez por semana. Para rezar. Quando fala de Véu, chora de soluçar. Conta que, meses antes do assassinato, o marido começou a receber ameaças. “O capataz vivia ameaçando, dizendo que eu ia ficar viúva. Eu nunca me ligava para isso”, afirma Ilcecleia.
Na manhã em que chegou ao quilombo, o Estado encontrou mulheres com bacias e crianças tomando banho no Tiningu. As águas do igarapé são usadas para beber, molhar as plantações de mandioca e banana e saciar a sede dos animais. “Fazendeiro inventa de fechar, aí é um problema para nós, pois á água do Tapajós é amarela. Não serve para beber nem lavar roupa”, avalia Júlia Mota, de 62 anos. “Não tem que ter um dono.”
A comunidade deu entrada no processo de reconhecimento de área quilombola em 1996. Na primeira reunião, apareceram 17 famílias. Hoje são mais de 80 declaradas. O território foi reconhecido pelo Incra, mas os moradores não conseguiram a posse definitiva. Essa insegurança motiva invasões. Eles afirmam que, mesmo após o assassinato de Véu, continuam sofrendo ameaças.
A presença das famílias na área é antiga. Em 1848, seis escravos fugiram de uma fazenda na região de Santarém e fundaram o quilombo aos pés da montanha de onde escorre o Igarapé do Tiningu. Na montanha, viviam índios, que se aproximaram dos negros. O dono do engenho mandava praças e soldados buscarem os fugidos. Os índios, do alto, assobiavam para avisar os negros. Isso aproximou indígenas e ex-escravos.
Assassinatos por conflitos de água também foram registrados em outras regiões do País. Na madrugada de 12 de março de 2018, por exemplo, o ativista Paulo Sérgio Almeida Nascimento, de 47 anos, de Barcarena, a 40 quilômetros de Belém, foi metralhado por desconhecidos quando saía de casa para ir ao banheiro, no quintal. Um dos líderes da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia, Nascimento denunciava à época a multinacional norueguesa Hydro Alunorte por uso ilegal das águas das nascentes do Rio Pará.
O Instituto Evandro Chagas, do Ministério da Saúde, indicou que a empresa tinha um duto irregular de rejeitos de bauxita, que despejava nos córregos formadores do Rio Mucuripe, afluente do Pará. A mineradora processou o autor da pesquisa, mas foi derrotada na Justiça. Para manter suas operações, a Alunorte teve que assinar Termo de Ajustamento de Conduta apresentado pelo Ministério Público. Em nota ao Estado, a Alunorte voltou a negar vazamento ou transbordo de seus depósitos de resíduos. A assessoria de imprensa da empresa afirmou que a mineradora passou a buscar um “relacionamento mais próximo” com as comunidades locais. “A empresa está investindo R$ 100 milhões nesta iniciativa cuja gestão é independente e deverá criar uma plataforma de desenvolvimento de longo prazo para a região.”
Disputas com morte também ocorreram em Mato Grosso. Em 5 de janeiro de 2019, por exemplo, seguranças dispararam contra agricultores que pegavam água no Rio Traíra, uma área de conflito de terra, em Colniza, a mil quilômetros de Cuiabá. Eliseu Queres foi morto. Outros nove agricultores ficaram feridos.
As vítimas ocupavam parte da Fazenda Bauru, em litígio na Justiça. A empresa alegou para a polícia que seus funcionários apenas reagiram a uma tentativa de emboscada.
Em Salvador, na Bahia, a comunidade Quilombo dos Macacos está em pé de guerra com a administração da Base Naval de Aratu, muito usada para hospedar presidentes, como Jair Bolsonaro. A Marinha pretende cercar uma barragem utilizada por 67 famílias e só liberar o acesso a cadastrados. A comunidade teme que a exigência seja o primeiro passo para o bloqueio total da água.
Na prática, o clima é tenso desde os anos 1970, quando a Marinha se instalou no quilombo. Confronto com militares à parte, os moradores sofreram um revés em 25 de janeiro do ano passado. Motivo: foram surpreendidos com o assassinato de sua liderança mais antiga, José Izídio Dias, de 89 anos. A Polícia Federal investiga o caso.
Texto: Patrik Camporez / Fotos e vídeos: Dida Sampaio
Confira matéria do site Estadão.
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