Martin Luther King Jr., pastor e ativista norte-americano, lembrava sempre em seus discursos que “as classes privilegiadas nunca desistem dos seus privilégios sem forte resistência”. Privilégios que naquele distante ano de 1955, em Montgomery, no estado norte-americano do Alabama, levaram à prisão Rosa Parks, uma mulher negra de meia-idade, costureira, por se recusar a dar assento a um passageiro branco em um ônibus. Essa prisão foi o estopim de um movimento não violento contra a discriminação e a segregação racial nos Estados Unidos, liderado pelo jovem pastor Martin Luther King Jr., de Montgomery, então com apenas 26 anos. A mobilização pelos direitos civis se fez ouvir por meio de boicotes, marchas, ingresso e permanência pacífica em áreas reservadas a brancos, protestos e discursos. Antes de alcançar suas grandes conquistas, contudo, esse movimento amargou derrotas e dores. Em diversas cidades, enfrentou forte reação contra a população negra por meio de ameaças, violência, prisões, bombas e assassinatos.
Desde 2014, instituições e cidadãos vêm empreendendo o maior esforço da história brasileira contra a corrupção. No entanto, recentemente, o combate à corrupção vem sendo desmontado por uma série de decisões judiciais e novas leis. No processo civilizatório, há frequente tensão entre forças do avanço e do retrocesso, pois, repita-se, “as classes privilegiadas nunca desistem dos seus privilégios sem forte resistência”. Apresentarei, neste e em uma série de artigos que virão a seguir, algumas perspectivas sobre retrocessos que vêm ocorrendo na luta brasileira contra a corrupção, mas não sem sugerir caminhos, apontar saídas e incentivar o fortalecimento da cidadania. Abordarei o ataque à colaboração premiada, o desincentivo criado pela Lei de Abuso de Autoridade para que juízes deem decisões legítimas contra poderosos, a criação de um juiz de garantias que exacerba a disfuncionalidade de nosso sistema, a ausência de condenações de réus pelo STF na Lava Jato e outros temas. Mas, antes, ofereço um pouco de contexto.
Nos últimos cinco anos, a Lava Jato e outras grandes operações revelaram como ladrões que ocupam cargos na estrutura do Estado usam sua influência para enriquecer e perpetuar seu poder. Foram acusados quatro ex-presidentes, dezenas de (ex-)parlamentares e ex-ministros de diferentes partidos, dois ex-chefes da Casa Civil, dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados, três ex-governadores, sócios e executivos de grandes empreiteiras e lavadores de dinheiro profissionais. É ilustrativo que uma única empresa tenha mencionado 415 políticos de 26 partidos em seu acordo de leniência, os quais incluíam quase um terço dos ministros e metade dos governadores de então. E ela nem era o vértice do mecanismo de corrupção político-partidário; era apenas um de seus muitos “clientes”.
Decisões e leis que dificultam a responsabilização de corruptos criam um ambiente mais favorável ao desvio de recursos
Em Curitiba, 498 pessoas já foram denunciadas e 159 foram condenadas por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa. As penas ultrapassam 2,2 mil anos de prisão. No Rio de Janeiro, foram até agora 339 denunciados e 41 condenados. No Supremo, onde 126 foram acusados, um foi condenado.
Apenas os desvios da Petrobras envolveram o pagamento de mais de R$ 6 bilhões em propinas e danos estimados em até R$ 42 bilhões. Contudo, as apurações se desdobraram para muito além daquela estatal: Eletrobrás, Ministério do Planejamento, Transpetro, BR Distribuidora, Caixa Econômica Federal, órgãos estaduais do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná etc. Um ministro do Supremo Tribunal Federal afirmou que “onde destampa tem coisa errada”; outro disse que “onde se puxa uma pena vem uma galinha”.
As cifras das propinas assustam, mas os prejuízos são maiores. Para compreendê-los, é preciso entender um pouco melhor o mecanismo da macrocorrupção política brasileira. Ele pode ser assim simplificado: muitos partidos e políticos desonestos indicam, para a chefia de órgãos públicos federais, estaduais e municipais, apadrinhados incumbidos de arrecadar propinas. Uma vez alçados a tais posições, eles fraudam licitações, vendem licenças, criam dificuldades para oferecer facilidades em favor de pessoas e empresas que concordam em pagar propinas, por vezes em troca de lucros extraordinários.
Esse esquema gera altas somas que vão para o bolso dos envolvidos e para campanhas eleitorais caríssimas. O dinheiro investido em campanha é muito nocivo porque tem impacto no número de votos alcançados nas eleições, segundo pesquisas. Dinheiro sujo, assim, alavanca a chegada dos corruptos ao poder. Tendo poder, os ladrões desviam mais, o que gera mais valores. Parte deles é reinvestida novamente na campanha própria ou daqueles que compactuam com o esquema; então, o ciclo vicioso se reinicia.
A corrupção se retroalimenta. Instala-se uma espécie de “seleção natural” no sistema político em que os mais fortes, que tendem a sobreviver e se multiplicar, são os ladrões. Estes passam a ter como relevante critério de investimentos a possibilidade de desviar recursos e não o benefício social que trarão. A Petrobras, por exemplo, fez investimentos ruinosos em refinarias cuja aquisição ou reforma foi regada a propinas.
No ambiente econômico, criam-se incentivos adversos também, porque as empresas que são especialmente adubadas com obras e financiamentos públicos são as corruptas. Vale mais a pena investir em um setor de pagamento eficiente de propinas que em inovação técnica e operacional. Não é à toa que duas das maiores empreiteiras tinham setores específicos para gerenciar pagamentos ilícitos.
Seguiremos trabalhando duro, mas as chances de uma nova Lava Jato existir e ter sucesso vêm sendo significativa e progressivamente diminuídas
O grande desafio brasileiro é romper aquele círculo vicioso que deturpa a nossa democracia e gera imenso dano à população.
Perdem-se recursos que deveriam ir para serviços públicos essenciais. Perde-se eficiência nos investimentos que são orientados para interesse privado. Perde-se representatividade dos mandatários pelo abuso do poder econômico nas eleições. Perdem-se a produtividade das empresas e a sua competitividade internacional. Perde-se o bom exemplo que deveria vir de cima e inspirar uma cultura de integridade nos negócios. Perde-se confiança nas instituições e na democracia.
Cabe aqui uma primeira ressalva: não estou desqualificando a política, essencial para mudanças, mas reconhecendo as mazelas daquela praticada aqui como consequência de um quadro de incentivos e desincentivos sistêmicos. É o diagnóstico que abre a oportunidade para tratamento. Além disso, há muitos políticos íntegros e dedicados à causa pública que devem ser valorizados.
Diante do quadro exposto, ocorreu um intenso e firme trabalho de uma série de autoridades públicas, de diferentes instituições, contra a roubalheira. Houve, nos primeiros anos da Lava Jato, uma forte reação social e uma legítima expectativa de que as brechas da corrupção e da impunidade fossem diminuídas.
Contudo, depois de cinco anos de operação, passaram a acontecer uma série de retrocessos. Foram aprovadas leis, como a de abuso de autoridade, e emitidos alguns julgamentos pelo Supremo, como o que proíbe a execução provisória da pena, que desmontam progressivamente o modelo de combate à corrupção que rendeu ao Brasil e à Lava Jato seus resultados. Tais decisões e leis têm por efeito dificultar significativamente investigações e processos contra a corrupção.
Segundo a teoria da decisão racional, pessoas respondem a estímulos e punições. A escolha de praticar crimes leva em conta as chances de seus autores serem responsabilizados e o montante das penas. Por isso, decisões e leis que dificultam a responsabilização de corruptos criam um ambiente mais favorável ao desvio de recursos. Diante desse cenário, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chegou a enviar uma missão de alto nível para o Brasil, em novembro do ano passado, a qual alertou para riscos de retrocesso no combate à corrupção. Além disso, o Brasil teve sua pior avaliação histórica no índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional divulgado dias atrás.
Devo, contudo, fazer nova e importante ressalva. Respeito o STF e o parlamento, instituições essenciais para nossa democracia. Além disso, não estou criticando determinados ministros ou parlamentares. Tampouco estou afirmando que cada ministro ou parlamentar que apoiou certa decisão ou lei é desonesto, ou busca proteger corruptos, ou facilitar a corrupção. Não estou julgando intenções. Minha análise está limitada aos efeitos de decisões judiciais e parlamentares na realidade do esforço anticorrupção.
A luta contra injustiças históricas e arraigadas pode demorar décadas e o seu sucesso exige atitude, perseverança e estratégia da sociedade
Investigações seguirão em frente. Seguiremos trabalhando duro, mas as chances de uma nova Lava Jato existir e ter sucesso vêm sendo significativa e progressivamente diminuídas. Se nada mudar até o fim da operação, será mais difícil investigar e processar a corrupção depois dela do que era antes. A própria operação já sente o impacto das mudanças.
Não vou assistir ao desmonte do combate à corrupção em silêncio. Estão errados aqueles que acreditam que a história é uma marcha inexorável de progressos. Como alertou Martin Luther King em sua luta, que é uma inspiração para aqueles que se dedicam a outras causas, “o progresso humano nunca se desenrola nas rodas da inevitabilidade”. O progresso “vem pelo esforço incansável” e, sem ele, “o tempo em si se torna um aliado das forças da estagnação”.
Avanços e retrocessos não são independentes de nossa ação e omissão. Como cidadãos, escolhemos o futuro do nosso país. A luta contra injustiças históricas e arraigadas pode demorar décadas e o seu sucesso exige atitude, perseverança e estratégia da sociedade. Quando vemos novas leis como aquela que veio para silenciar colaboradores, que analisaremos no próximo artigo, é preciso romper o silêncio.
Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba.
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