‘Estamos como reféns’, diz morador que deixou o Córrego do Feijão depois do desastre. Lugarejos hoje convivem com traumas, transtornos causados por obras e perda de renda.
Barulho de máquinas pesadas, caminhões e caminhonetes cortando ruas e estradas, gente desconhecida cruzando o caminho todo o tempo. Um ano após a tragédia da Vale, comunidades de Brumadinho, antes acostumadas ao sossego e à tranquilidade, hoje vivem sem paz. Além do trauma pela morte de parentes e amigos, moradores reclamam de transtornos constantes.
No Córrego do Feijão, comunidade que dá nome à mina que foi cenário da tragédia que deixou 270 vítimas entre mortos e desaparecidos no dia 25 de janeiro de 2019, o clima ainda é de luto pela morte de cerca de 20 moradores.
“É uma angústia muito grande. A cada dia, a gente vivência a mesma coisa. Você não tem a sua liberdade, você não tem a sua tranquilidade, sua dignidade. Nós estamos como reféns”, diz o aposentado Nelton Ferreira Pena, de 49 anos – quase 25 deles vividos no Córrego do Feijão.
Ele conta que se mudou de Belo Horizonte para o lugarejo justamente em busca de sossego e paz, perdidos após o rompimento da barragem B1. Para Nelton e para a família, continuar vivendo na comunidade se tornou insustentável.
“É carro de empresa para lá, aquele monte de homem de empresa para cá e aquela bagunça toda. Você não tem seu espaço, você não tem seu limite. Lá no Córrego do Feijão é o seguinte: o morador fica dentro de casa, os que forem de fora que trançam. Principalmente, Vale. É o que trança lá dentro com liberdade”, diz.
Atualmente, Nelton, a mulher Francis Natália da Silva, de 34 anos, e os filhos moram em uma casa alugada pela mineradora na sede de Brumadinho. Mas a vontade não era de estar lá.
“Cada dia que passa, mais vontade de ir embora eu tenho. Não sei [para onde]. Ficar aqui que eu não quero. Voltar para o Córrego do Feijão não tem como. O chão foi tirado. Lá nós tínhamos história, lá nós tínhamos raízes. Hoje, cadê?”, afirma o aposentado.
Assim como a família de Nelton, muitos resolveram deixar o Córrego do Feijão ao logo dos últimos 12 meses. Moradores dizem que até a mercearia fechou as portas.
O servente Daniel Francisco Solano, de 53 anos, resistiu ao último ano no local onde nasceu, cresceu e formou família. Mas, para ele, o lugar perdeu a graça depois da tragédia. “Não tem alegria, a gente dorme pouco, não dorme bem, sonha com as pessoas que morreram. Já fui num psicólogo, já fui num psiquiatra, mas isso não muda muita coisa, não. A lembrança fica”, diz.
Daniel também vai seguir os rumos do vizinho Nelton e já está com tudo pronto para se mudar do Córrego do Feijão.
“Vou embora vivo, graças a Deus, né? Ainda bem. Quantos foram embora mortos?”, desabafa.
‘A gente não tem paz mais’
No bairro Parque da Cachoeira, a lama da barragem da Vale levou casas e também sonhos. A comerciante Flávia Antônia da Silva, de 30 anos, trabalha desde os 20 em sua mercearia. Apesar de seguir de portas abertas, ela acredita que não conseguirá manter o negócio por muito mais tempo.
Mãe de quatro filhos, Flávia viu a renda cair e as dívidas aumentarem depois da tragédia. Isso porque seus principais clientes – produtores rurais e sitiantes – sumiram. Ela e a família recebem o auxílio emergencial da Vale, mas a comerciante conta que, por mês, conseguia tirar entre R$ 7 mil e R$ 8 mil na mercearia. Hoje, o valor não ultrapassa R$ 2 mil, segundo ela.
“Não tem mais produtor rural porque não tem mais horta, que foi invadida pela lama. Sitiante não vem mais. A gente não tem paz mais, porque você tem o sítio para você descansar. Hoje a gente não tem mais isso. Porque é caminhão o tempo todo, é gente estranha o tempo todo. Aquele cantinho no meio do nada que a gente tinha aqui, a gente não tem mais não”, afirma.
Dono de outra mercearia no Parque da Cachoeira, o presidente da associação de moradores da comunidade, o comerciante Adilson Charlys Ramos de Souza, de 45 anos, vive situação semelhante à de Flávia.
“O movimento aqui era bom. Dava para tirar o sustento da minha família, para programar as coisas que eu queria fazer extracomerciais aqui, meus passeios, dava para tirar tudo aqui do comércio. Hoje eu tenho que contar pratinha para pagar boleto”, conta.
Na área encoberta pela lama no Parque da Cahoeira, Adilson tinha um depósito. No dia do rompimento, ele não estava no local porque havia ido a Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Um ano após a tragédia, o comerciante diz que ele e os moradores que ficaram no bairro vivem uma incerteza diante de uma paisagem transformada pelo mar de lama e máquinas pesadas.
“A gente quer uma reparação do bairro. [Saber] se a gente pode ficar aqui ou não. Qual é o estudo que a Vale traz para gente, se a gente pode permanecer aqui ou não. É isso que a gente quer dessa mineradora que tanto fala que a lama não é tóxica. Então, ela que prove para gente que a gente pode ficar aqui”, questiona.
Em nota, a Vale afirmou que o rejeito de minério de ferro é formado em sua maioria por minerais ferrosos e quartzo, considerado inerte.
A balconista Daniela Nogueira Silva, de 21 anos, diz que somente não se muda do Parque da Cachoeira por falta de condição.
“Ninguém fica aqui depois dessa tristeza que aconteceu. Aqui era tranquilo, dava até para morar, mas agora não dá, não. Muito barulho de máquina, caminhão. Está triste. Acabou a tranquilidade”, diz.
Ao lado da casa de Daniela, está o sítio do empresário Felipe Salviano dos Santos, de 29 anos. Mas ele afirma que pretende se desfazer do imóvel, que costumava alugar até três vezes por mês antes da tragédia.
“Depois que houve esse ocorrido, o pessoal ficou com medo de alugar. Até então eu não aluguei mais. Hoje, infelizmente, nem os parentes estão vindo”, afirma.
‘A tranquilidade da comunidade acabou’
Na comunidade de Ponte das Almorreimas, a lama da barragem da Vale não chegou. Nem por isso os moradores tiveram um ano de paz como estavam acostumados.
Para evitar o desabastecimento na Grande BH, no local, é construído um ponto de captação no Rio Paraobepa, já que o trecho onde era feita a retirada de água anteriormente foi atingido pelos rejeitos de minério.
A contadora Cléria de Lourdes Apóstolo Nogueira, de 55 anos, tem um sítio na região. Ela diz que, além dos transtornos causados pelo barulho e pelo trânsito de funcionários e veículos da obra, moradores tiveram as poucas opções de lazer afetadas e que a paisagem foi completamente transformada.
A via em que moradores faziam caminhada se tornou rota de caminhões e a igrejinha de São Vicente de Paula hoje está cercada pela obra.
“Então, a tranquilidade da comunidade acabou. Aquilo que era lugar de sossego, hoje é tormento. (…) Então, a Vale chegou aqui, e a sensação que os moradores têm é que nós estamos dentro da propriedade da Vale, não o contrário”, afirma.
O que diz a Vale
De acordo com a Vale, a empresa está empenhada na execução de ações que permitam a retomada da rotina das famílias afetadas direta ou indiretamente pelo rompimento. “O objetivo é reparar os danos causados, com iniciativas para restabelecer social e ambientalmente os municípios impactados”, afirma a empresa por meio de nota.
Para as ações de reparação e compensação pelo rompimento, a empresa possui provisionados recursos de R$ 24,1 bilhões. Este orçamento prevê repasses para programa de indenizações, intervenções ambientais, projetos socioeconômicos, apoio a medidas do poder público e descaracterização das barragens a montante em Minas Gerais.
Em abril, a Vale e a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais assinaram Termo de Compromisso por meio do qual as pessoas atingidas pelo rompimento pudessem optar por acordos individuais ou por grupo familiar, para buscar indenização por danos materiais e morais. Até o dia 16 de janeiro, 3.193 acordos haviam sido aceitos por famílias atingidas. A Vale também tem pago um auxílio emergencial a moradores, que no caso de adultos, por exemplo, é de um salário mínimo.
Em novembro um acordo foi firmado para manutenção do benefício. O auxílio continuará a ser pago de forma integral a moradores de Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo, Pires e nas margens do Córrego Ferro-Carvão. Quem vive em outras áreas, mas participa de algum programa de apoio, também vai continuar recebendo o valor total do benefício. Para as demais pessoas, o valor será reduzido em 50%.
Em relação à comunidade do Córrego do Feijão, a Vale tem um projeto de requalificação urbana chamado território-parque. A proposta atende a dois objetivos, prioritariamente. O primeiro, humano, de reparar e permitir que as famílias da principal região impactada pelo rompimento possam retomar rotinas. O segundo, de gerar desenvolvimento econômico ao local. A proposta é que as primeiras obras sejam concluídas e entregues à comunidade em dezembro de 2020.
Já sobre as obras do novo ponto de captação no Rio Paraopeba, a Vale disse que o prazo de conclusão é setembro de 2020. Ainda de acordo com a mineradora, em relação aos possíveis impactos, foi adotada uma série de medidas mitigatórias, como a umectação e melhorias de vias, direcionamento de ações que geram mais ruído no período diurno, encapsulamento de motores para abafar o som e desligamento, a partir das 19h, dos alarmes de ré de equipamentos.
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