O acordo entre EUA e China não tem dentes

China e Estados Unidos assinaram a Fase 1 do acordo que promete trégua à guerra comercial| Foto: WANG ZHAO / AFP

Os governos de EUA e China finalmente assinaram um acordo comercial no último dia 15 de Janeiro. Nomeado como “Fase Um” nessa relação comercial e econômica, o documento de cerca de 90 páginas foi das principais notícias mundiais nessa semana, já que todas as economias observam o relacionamento entre os dois gigantes. Alguns comentários e breves análises já podem ser feitos, a partir do que está no papel e da repercussão.

Trump nas eleições

Começando pela repercussão, a assinatura foi ponto para Donald Trump. Desde o início de suas negociações, com Trump podendo argumentar que sua postura “dura” perante os chineses e sua política de tarifas levaram ao governo chinês precisar sentar na mesa de negociações; até o fim, com a assinatura ocorrendo em Washington, entre ele e Liu He, vice-premiê da China e diretor da comissão econômica do PC chinês.

Principalmente, estamos em ano eleitoral nos EUA, e as fotos do sorridente Trump e sua enorme assinatura no documento vão correr pelo seu país nos próximos meses. Sinal de que ele estaria, de fato, “making America great again”. Importante notar que isso não significa julgamento de valor sobre as tarifas em si, se elas estão sendo boas ou ruins para a economia do país. O fato é que o acordo renderá ganho político e eleitoral.

A própria nomenclatura do acordo fortalece esse ganho. Uma miríade de temas ficaram de fora do documento e diversas tarifas de Washington ainda vão vigorar. Talvez o principal “silêncio” do acordo é a política chinesa de subsídios industriais. O motivo de estar de fora? Oras, não vão chegar em um acordo. A China não vai abandonar essa política e o governo dos EUA não vai deixar de reclamar.

Pequim, em troco, também não vai deixar de acusar Washington de hipocrisia, sua defesa frequente nesse assunto: o governo dos EUA reclama dos subsídios chineses mas também subsidia suas próprias companhias e indústrias. Só que nada disso importa para as eleições. Algo ficou de fora? Um opositor político fez alguma crítica? Tudo bem, é a “Fase Um”, vamos ver como fica na “Fase Dois”, “tenham paciência”, etc.

Negócios são só negócios

Mesmo trabalhando com essa lógica, de que temas mais complexos ficarão para rodadas futuras de negociação e que optaram por assinar primeiro o que já estava acordado, dois aspectos são importantes de serem analisados. O primeiro é o de que negócios são negócios, amigos à parte. A ausência de temas de tecnologia militar e de comunicações não é pela “Fase Um” do acordo.

Esses temas não serão negociados. Ponto. Uma coisa é a relação comercial, outra coisa é a disputa por influência geopolítica e por primazia militar e tecnológica, especialmente na bacia do Pacífico e no oceano Índico. O caso mais conhecido dessa disputa, especialmente por chegar até os consumidores, gira em torno da empresa de telecomunicações Huawei e seu desenvolvimento da rede 5G.

O governo dos EUA já deixou claro que não partilhará informações de inteligência com países que adotem a tecnologia chinesa. Essa ameaça já foi feita ao Brasil, à Alemanha e ao Reino Unido. Segundo Washington, a adoção da tecnologia chinesa deixaria as comunicações vulneráveis à espionagem; o vazamento de Edward Snowden deixa muito claro como o governo dos EUA sabe dessa possibilidade.

E não se trata de nenhuma conspiração ou de teoria infundada da coluna. É exatamente o que defende Michael Pillsbury, autor de The Hundred-Year Marathon, livro imprescindível para compreender a política de Trump em relação aos chineses. O historiador é diretor de um dos principais think tanks sobre sinologia e conselheiro da Casa Branca de Donald Trump; sua influência remonta ao início de sua carreira acadêmica, com Kissinger.

Falta de dentes

A segunda questão é que o acordo mal prevê um mecanismo de disputa e de solução de controvérsias. Os artigos do capítulo sete do acordo estabelecem, basicamente, que queixas e controvérsias serão apresentadas de um país ao outro e negociadas entre representantes menores de seus governos. Na falta de solução, negociadas por representantes seniores. E caso não se chegue numa solução?

Nada. Não há mecanismo de arbitragem, formação de uma corte independente e permanente, ou de alguma agência que fiscalize a implementação do acordo. Todos esses procedimentos são praxe em grandes acordos. É quase um acordo no “fio do bigode”, sem mecanismos de controle ou de supervisão. Como acusar uma empresa de estar descumprindo o acordo, se não há supervisão nem transparência?

Um acordo no “fio do bigode” pode funcionar entre dois indivíduos, agora, entre duas das maiores economias do mundo? Envolvendo milhares de empresas? Quando uma empresa chinesa afirmar que está cumprindo o acordo, como provar isso? Como sustentar uma queixa? O artigo 7.3 chega a dizer que nenhuma parte é obrigada a prover informações confidenciais à outra.

Desculpa perfeita para a opacidade. Vamos supor que uma empresa chinesa reclame da postura de uma empresa dos EUA. Pedem-se mais esclarecimentos, que são negados sob a justificativa de que são confidenciais e que podem afetar o desempenho de tal empresa na bolsa de valores e seus investimentos. No caso inverso, pode-se alegar que o Estado chinês possui interesse confidencial na empresa de seu país.

No fundo isso torna o acordo muito frágil, sem dentes, uma expressão para quando um acordo internacional não prevê uma maneira de controlar sua implementação e punir suas violações. A Liga das Nações não possuía dentes, o que inspirou o capítulo sete da Carta da ONU, que disserta sobre sanções e punições aos países. O acordo “Fase Um” não é banguela apenas por não tratar de guerra, mas por não punir sua violação.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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