As forças de segurança do país e as universidades públicas há anos vivem uma relação desgastante. Ressentimentos históricos, diferentes visões ideológicas e interpretações da Constituição Federal – sobre até onde podem se entrecruzar esses dois grupos – agravam o cenário.
Em muitas universidades, é recorrente o argumento de que, sem a permissão da Reitoria, polícias não poderiam entrar nos campi. Do contrário, alegam as instituições, sua autonomia seria lesada. E é com essa justificativa que elas têm estabelecido barreiras contra a atuação das polícias no combate a crimes em seus edifícios e laboratórios.
Esse posicionamento por parte de algumas das instituições, no entanto, não encontra amparo na Constituição. Não há fundamentação jurídica que impeça a atuação das forças de segurança, na figura das polícias militares, civis e federais, nos campi universitários.
O que diz a Constituição
A Constituição Federal, em seu art. 144, estabelece que a segurança pública, a fim de preservar a ordem e a incolumidade da população e do patrimônio público, deve ser exercida pelas polícias federais, civis e militares. A atuação desses órgãos, no entanto, não se restringe exclusivamente a quesitos territoriais, mas, sobretudo, de finalidade.
O parágrafo 5º do mesmo artigo, por exemplo, esclarece que o policiamento ostensivo – presença proposital da polícia, fardada, de forma que possa ser identificada, em algum espaço, com caráter preventivo – é atividade exclusiva da Polícia Militar, permitida em todos os logradouros públicos do Brasil.
“As atividades da PM podem se dar de duas formas. A primeira é a forma preventiva, que corre antes da prática de crime, e a segunda forma é a repressão, quando ocorre a prática de delito e a polícia atua para efetuar prisão e cessar a prática criminosa”, explica Rodrigo Foureaux, juiz do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
O coronel Lanes Randal Prates Marques, chefe de Estado-maior da PM do Paraná, afirma que, por essa razão, não há limite territorial para as atividades. “A PM tem a competência de restabelecer a segurança pública e a ordem social. Isso faz com que nós não tenhamos nenhum limite espacial para atuação. Podemos [PM-PR] atuar em 100% do território paranaense”, explica. “Mesmo nas competências que estão bem definidas, a Polícia Militar atua supletivamente”.
Em fronteiras, por exemplo, a responsabilidade principal de atuação é da Polícia Federal, mas isso não inibe a PM de exercer suas atividades. Em relação a investigações, além disso, típicas da polícia judiciária, a Polícia Militar também atua de forma complementar.
Atuação em universidade
É dessa forma que se reconhece a legitimidade de atuação de todas as forças de segurança nos campi universitários, pertencentes à União. Enquanto as PMs podem trabalhar com segurança ostensiva nas universidades, além de reprimir e investigar crimes, as polícias federais devem apurar crimes contra a União. À Polícia Civil, cabe a investigação de delitos nas instituições estaduais.
“A universidade tem autonomia, mas a autonomia dela é em relação à sua atividade fim, que é a autonomia didático-científica. E não uma autonomia para decidir se a polícia pode ou não realizar segurança pública em suas vias”, diz Foureaux.
Para nenhuma atividade preventiva, explica o coronel Prates, é necessário que, por parte da Polícia Militar, haja notificação prévia. “Se o nosso serviço de inteligência identificar qualquer problema que possa comprometer a ordem e a segurança pública, a PM irá ao local e resolverá o problema”, diz. “Não precisamos contatar previamente ninguém, isso é perfeitamente possível”.
Quando há acionamento, além disso, a Polícia Militar não apenas pode como deve comparecer ao local onde foi solicitada para agir. “A PM é um órgão público de acionamento extremamente desburocratizado. Toda vez que houver acionamento, em situação de emergência, a polícia comparecerá”, diz o coronel. “Qualquer cidadão que chame ou que acione, levante a mão. Nesta condição, se tiver qualquer ocorrência dentro da universidade, a Polícia Militar entrará a fim de restabelecer a ordem pública”.
Nas palavras do advogado Henrique Castilho, o campus não é um domicílio inviolável. “A universidade não é um território federal. É uma área em que se tem um patrimônio da União, é gerida por reitor e diretores das unidades, e há a prefeitura do campus”, diz. “A polícia, porém, não se submete à essa estrutura administrativa. Ela tem poder estabelecido pela Constituição e pode entrar sempre que achar necessário”.
O advogado Fernando Pinheiro Pedro entende, no entanto, que por se tratar de uma área pública de uso especial, para realizar patrulha ostensiva, a PM teria de notificar previamente a administração do campus universitário. “É preciso haver um entendimento com os responsáveis pelos campi, pois quando se passa para dentro dele, é uma área restrita de uso especial”, explica.
À Gazeta do Povo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), umas das procuradas pela reportagem sobre a questão, disse que entende que a ação de forças policiais públicas deve ser acordada com a gestão da universidade, para estabelecimento de formas e limites de ação. “A UFRJ tem mantido um relacionamento republicano com as forças policiais. Nosso campus da Cidade Universitária é integrado à cidade do Rio de Janeiro, mas a universidade goza de autonomia para decidir sobre a atuação da PM, pois estamos nos referindo a áreas federais”, defende.
Segurança privada
Ao destinar recursos às universidades, o Ministério da Educação não exige que parte das verbas seja aplicada em segurança privada no campus. As próprias instituições, no âmbito de sua autonomia administrativa e de gestão orçamentária, financeira e patrimonial, decidem se terão forças de defesa particulares e como aplicarão os recursos nesse sentido.
Mas, mesmo entre as universidades que contratam segurança privada, as atividades policiais não podem ser interditadas. Segundo explicam os especialistas, não se pode substituir um serviço pelo outro. “Obviamente, toda universidade deve ter a responsabilidade de cuidar da segurança do seu patrimônio, e isso pode significar contratar segurança privada”, afirma Pedro. “Mas a afirmação de que, por ter segurança privada, não é preciso segurança pública, é um equívoco grave. A Constituição, em nenhum momento, concedeu às universidades soberania territorial. Os organismos de segurança pública têm prevalência, e eles são a expressão da soberania do Estado”.
Tem autonomia, mas é pertinente?
Ainda que seja conhecida a autonomia das forças de segurança para atuarem nos territórios acadêmicos, há quem questione se algumas atividades são pertinentes, como as rondas ostensivas, por exemplo.
Para Pedro, não parece oportuno, a princípio, se as universidades tiverem controle das atividades que ocorrem no campus. “Não há necessidade do poder público fazer a mesma coisa que a guarda patrimonial da universidade”, diz. “Existem sempre preocupações de não manter um policiamento ostensivo em um campus para não constranger as eventuais manifestações de ordem estética, cultural”.
“O que ocorre é um trauma histórico referente à ocupação de campi universitários por forças armadas, em função dos esforços ocorridos durante o regime militar e o movimento estudantil de 68”, explica o advogado. “Se criou, então, uma ideia de que o campus, em especial o das universidades federais, fosse um lugar onde as forças de segurança não podem entrar”.
Segundo Foureaux, em casos de manifestações, não cabe às polícias agirem a fim de impedi-las. “Se estiver ocorrendo um protesto dentro da universidade, não cabe à PM fazer cessar. É um direito, liberdade de expressão. A polícia pode apenas garantir a segurança para que as pessoas realizem os protestos”, explica.
Denúncias
Em 2019, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, denunciou práticas criminosas que estariam sendo cometidas dentro das universidades. Ele foi convocado, inclusive, pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados para dar esclarecimentos a respeito do tema.
Na ocasião, Weintraub mostrou reportagens de diferentes emissoras sobre casos de plantação, consumo e tráfico de drogas realizados dentro de campi universitários públicos.
A Gazeta do Povo também publicou, em 2017, uma série de reportagens que revelou como o consumo e tráfico de drogas, além de outros delitos, são tolerados dentro dos campi.
Projetos
Enquanto perdura essa discussão na sociedade, no Congresso Nacional já tramitaram, e alguns ainda tramitam, projetos de lei sobre a atuação das forças de segurança nas universidades.
Proposta de 2011, da ex-deputada Andreia Zito, estabelece a criação das “polícias universitárias federais”. O parlamentar João Rodrigues, em 2014, apresentou um projeto de lei que prevê a atuação das polícias nos campi.
Mais recente, uma sugestão do deputado paranaense Filipe Barros também defende a atuação das forças de segurança em território universitário. O que é, constitucionalmente, legal.
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