Pouco depois de antecipar para a manhã desta quarta-feira, dia 20 de novembro, um julgamento sobre o compartilhamento de dados bancários entre órgãos como o Coaf (hoje Unidade de Inteligência Financeira) e o Ministério Público, o país soube que o presidente da corte, ministro Dias Toffoli, havia tomado uma decisão bastante criticada. No fim de outubro, ele tinha exigido que o Banco Central lhe enviasse cópias de todos os relatórios produzidos pelo Coaf nos últimos três anos, o que, na prática, deu a Toffoli acesso a informações sigilosas de cerca de 600 mil contas, incluindo autoridades e empresários. Nesta segunda-feira, após reunião com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto; o procurador-geral da República, Augusto Aras; e o advogado-geral da União, André Mendonça, o ministro recuou da decisão; na manhã de terça-feira, Toffoli ainda desistiu de obter representações fiscais para fins penais emitidas pela Receita Federal desde 2017.
O que o presidente do STF queria com os dados de movimentações bancárias de cerca de 410 mil cidadãos brasileiros e outras 186 mil pessoas jurídicas? A justificativa dada por Toffoli foi muito pouco satisfatória: ele desejava simplesmente entender como funcionam a elaboração e a tramitação dos relatórios, como preparação para o julgamento desta quarta-feira. Dando-lhe crédito, e aceitando que seja esta a verdadeira motivação – e não algum desejo inconfessável de bisbilhotar informações de desafetos ou saber se há amigos e parentes entre as pessoas que estão sob o escrutínio dos órgãos de inteligência financeira –, não haveria necessidade alguma de exigir acesso a tantos dados (que, aliás, ele alega nem ter lido). Qualquer servidor qualificado da UIF ou do Banco Central poderia ter passado algumas horas com o presidente do Supremo fornecendo todas as explicações necessárias, inclusive usando dados que pudessem ser colocados à disposição de Toffoli para ajudá-lo em seu intuito.
Pouco importa se Toffoli não chegou a ler dado algum; basta a exigência de acesso indiscriminado para que estejamos diante de uma situação absurda e preocupante
O fato é que a exigência inicial de Toffoli testou os limites do Estado Democrático de Direito, que existe justamente para proteger o cidadão do arbítrio dos detentores do poder. E, quando um magistrado exige acesso a relatórios com dados protegidos sob sigilo, sem que haja qualquer motivo previsto em lei para que esse sigilo seja quebrado, e independentemente da sua boa ou má intenção, há uma afronta grave a direitos fundamentais – o sigilo bancário, ainda que não esteja explicitamente mencionado na Constituição, está subentendido no inciso X do artigo 5.º da Carta Magna, que protege a “intimidade” e a “vida privada” do cidadão. Aqui, pouco importa se Toffoli não chegou a ler dado algum; basta a exigência de acesso às informações e o cumprimento desta exigência por parte da autoridade financeira – no caso, o Banco Central, responsável pela UIF – para que estejamos diante de uma situação absurda e preocupante, que apenas reforça a percepção de que o STF e seus membros não veem limites em sua atuação.
Ironicamente, é justamente o sigilo destes dados que está por trás da liminar que o próprio Toffoli concedeu em julho, a pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), suspendendo todos os processos em que informações sobre movimentações financeiras foram enviadas ao Ministério Público por órgãos como a Receita Federal, o Banco Central e o Coaf/UIF, sem autorização judicial prévia. A preservação da intimidade invocada pelo presidente do Supremo na ocasião da liminar foi exatamente o que ele ignorou em sua requisição, agora revogada, ao Banco Central.
Em ocasiões anteriores, a possibilidade deste compartilhamento de dados foi afirmada pelo STF, que considerou constitucionais trechos da Lei Complementar 105, que regula o sigilo fiscal. O julgamento desta quarta-feira está atraindo atenção internacional, especialmente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que avalia o impacto da suspensão dos processos no combate à corrupção, especialmente nos crimes de lavagem de dinheiro. Um eventual compartilhamento de dados, dentro de uma investigação, atendidos todos os critérios legais e vedado o acesso a terceiros, não é brecha para a relativização do sigilo bancário; ao impedir esta cooperação entre instituições, ao mesmo tempo em que pede – e consegue – acesso a dados de centenas de milhares de brasileiros, Toffoli cai, conscientemente ou não, em uma contradição perigosíssima, pois barra o que a lei permite, como instrumento para descobrir corruptos, enquanto valida o arbítrio que ignora a proteção legal às informações dos cidadãos.
Be the first to comment on "Toffoli, os dados do Coaf e o teste ao Estado de Direito"