As estratégias do boliviano Evo Morales para se manter no poder terminaram com o fim antecipado do mandato do então presidente, pressionado por protestos de rua que duram semanas e que haviam obtido a adesão das forças de segurança. Na tarde de domingo, dia 10, Morales anunciou sua renúncia, poucas horas depois de prometer realizar novas eleições, sem deixar claro se participaria ou não da disputa. Morales já está no México, país que lhe ofereceu asilo, e a Bolívia vive agora um caos institucional, pois também renunciaram o vice-presidente, Álvaro García Linera, e os presidentes da Câmara e do Senado bolivianos, deixando vazia a linha sucessória.
Morales, que governava a Bolívia desde 2015, poderia muito bem ter evitado lançar o próprio país na confusão atual. A sua terceira eleição, em 2014, já tinha sido controversa, exigindo a intervenção da Justiça e uma interpretação laxista da nova Constituição do país para que Morales pudesse disputar a presidência. Quando, em 2016, a população, em um referendo, negou ao presidente a possibilidade de tentar um quarto mandato, o recado suficientemente claro foi ignorado por Morales, que mais uma vez conseguiu de uma suprema corte aparelhada a permissão para concorrer. A Bolívia vive um momento econômico favorável, com inflação e desemprego baixos e crescimento acima da média latino-americana; não é exagero imaginar que Morales teria tido enorme facilidade em fazer um sucessor, mantendo no poder o seu Movimento ao Socialismo e saindo de cena com um legado a celebrar, mas a tentação da perpetuação no poder falou mais alto.
Se mesmo antes da eleição de outubro os bolivianos já estavam nas ruas, as irregularidades na apuração, que deu ao presidente uma vitória no primeiro turno, foram a gota d’água para a população, que colocou os ataques à democracia acima dos resultados econômicos de Morales. A oposição da comunidade internacional, por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA), aos resultados oficiais do pleito e a adesão de policiais e militares aos protestos deixaram o presidente encurralado. Na manhã de domingo, Morales anunciou a substituição da cúpula da Justiça eleitoral boliviana e prometeu realizar novas eleições, mas não se excluiu voluntariamente, deixando subentendido que pretendia participar da disputa. O recuo não foi suficiente, culminando com a renúncia.
A Bolívia, agora, tem duas urgências: uma delas é o restabelecimento das instituições, a começar pela recomposição do governo e da linha sucessória, com a designação de um presidente interino que supervisione um novo processo eleitoral. Por esse ângulo, ao criar um perigoso vácuo de poder, a renúncia apenas agrava a crise; no entanto, a própria teimosia de Morales fez com que sua saída antecipada se tornasse o único desfecho possível. Quando os protestos ainda estavam em seus momentos iniciais, ainda havia a possibilidade de o presidente anunciar uma nova eleição, comprometendo-se explicitamente a não participar dela, e permanecer no governo até o fim do mandato, entregando a faixa a um sucessor escolhido em um pleito limpo. Mas não foi o que ocorreu: o presidente esticou a corda a ponto de os manifestantes e as forças armadas não mais se contentarem com novas eleições limpas, passando a exigir a renúncia do presidente como condição para a “pacificação e a manutenção da estabilidade”, nas palavras do chefe do Exército, Williams Kaliman. A segunda urgência é justamente esta pacificação do país, com o fim da violência nas ruas e das hostilidades a personalidades políticas pró e contra Morales, já que os distúrbios continuam mesmo após a renúncia e a saída de Morales do país.
Pacificação é o que também busca o presidente chileno, Sebastián Piñera, que já enfrenta quase um mês de protestos violentos, marcados desde o início por vandalismo e destruição, especialmente na capital, Santiago. Piñera anunciou a intenção de iniciar um processo para o estabelecimento de uma nova assembleia constituinte que dê ao país uma nova Constituição, substituindo a atual, de 1980 – herança, portanto, da cruel ditadura de Augusto Pinochet, que durou até 1990.
Em tese, quanto mais longevas as Constituições, melhor, pois indicam estabilidade democrática. No entanto, há momentos em que se justificam mudanças drásticas, como foi o caso brasileiro: após a redemocratização, a Constituição de 1988 substituiu uma Carta Magna redigida por um regime autoritário. O Chile não passou por este processo, deixando para trás a ditadura, mas mantendo a Constituição da era Pinochet, ainda que emendada. Momentos de convulsão social como os atuais, no entanto, nem de longe são os mais adequados para alterações tão profundas; afinal, novas assembleias constituintes têm carta branca, sendo impossível imaginar de antemão o que elas decidirão. Ambientes altamente polarizados ou pressionados pela confusão nas ruas não têm como gerar uma Constituição que reflita consensos e sirva de fundação para sustentar um país durante os terremotos, fazendo da intenção de Piñera uma aposta arriscada.
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