APÓS 10 ANOS, BRICS VIVE DILEMA: COMO CONTINUAR RELEVANTE?

APÓS 10 ANOS, BRICS VIVE DILEMA: COMO CONTINUAR RELEVANTE?

O Brasil recebe, nesta semana, os líderes mundiais mais importantes que pisarão em solo brasileiro neste ano: Xi Jinping, da China, Vladimir Putin, da Rússia, Narendra Modi, da Índia, e Cyril Ramaphosa, da África do Sul. Ao lado do presidente Jair Bolsonaro, eles compõem o BRICS – o grupo dos países emergentes – e estarão em Brasília no momento que o bloco completa 10 anos e vive uma encruzilhada: como continuar relevante?

Oficializado em uma cúpula na Rússia em 2009, os BRICS surgiram para fazer frente à predominância geopolítica dos Estados Unidos. Na época, falava-se em reformas em organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e até em uma moeda única. Com culturas, idiomas e prioridades distintas, o grupo representa 41% da população mundial e tem hoje um PIB somado de 20 trilhões de dólares – superior ao da União Europeia.

O que é

O termo foi citado pela primeira vez pelo analista econômico Jim O’Neill. Ele designava as economias emergentes mais importantes do planeta. Na época, era BRIC, sem a África do Sul.

Criador do termo BRIC em 2001, o economista britânico Jim O’Neill diz que a atuação política do grupo deixou a desejar. Ele exemplifica dizendo que não houve uma ação coletiva dos países que beneficiasse a todos. “Por que não consideram ativamente acordos comerciais mais sérios ou decidem manter mais das moedas uns dos outros em suas reservas?”, questiona. O’Neill, que hoje atua no Instituto Real de Assuntos Internacionais do Reino Unido, é taxativo ao oferecer um conselho para o grupo.

Cada país deveria tratar o outro seriamente e buscar áreas reais de cooperação”.
Jim O’Neill

HEGEMONIA CHINESA OFUSCA DEMAIS MEMBROS

O cientista político Gunther Gundzit, professor de relações internacionais da ESPM, tem visão cética sobre o grupo, em especial porque hoje é clara a tendência de a China ser cada vez mais hegemônica. “O motivo inicial dos BRICS, de alterar as dinâmicas globais, não vai ser alcançado. Não há convergência de princípios e valores”.

“Quando o BRICS foi constituído, a finalidade era discutir uma nova geografia econômico-comercial, mas esse objetivo não ganhou a devida aderência. O comércio intra-bloco ainda é baixo se levarmos em consideração o potencial”, avalia o cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade de Harvard.

Para Kalout, o Brasil deve redimensionar a importância e o papel do BRICS em sua estratégia internacional. “Deveríamos explorar oportunidades concretas de aprofundamento de iniciativas para a cooperação científica e tecnológica, sobretudo nos setores espacial, de telecomunicações e de energias renováveis”.

A pesquisadora russa Anastasiia Piatachkova ainda entende que o BRICS pode se fortalecer no futuro. “Existem benefícios claros em iniciativas concretas, como a promoção de intercâmbios internacionais de educação e cooperação em áreas estratégicas”, diz.

Veja abaixo o que pensam analistas especializados nos cinco integrantes dos BRICS para entender quais são as motivações e dilemas de cada um dos integrantes dentro do grupo.

Linha do tempo das reuniões

Brasil

Presidente Bolsonaro em visita à China em outubro.ISAC NOBREGA/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Na avaliação de analistas ouvidos pelo Estado, a cúpula deste ano pode ser ‘esvaziada’ devido ao foco atual da política externa do Brasil, organizador do encontro. Para eles, a atuação do Brasil está muito direcionada na Venezuela e no alinhamento com os Estados Unidos.

“Não há uma euforia ou uma animação do organizador como já houve no passado. A cúpula dos BRICS sempre é uma chance de se projetar como estadista. É um bloco bastante inovador, traz presidentes poderosos, de três potências nucleares, não é todo dia que um País como o Brasil recebe essas figuras”, diz Oliver Stuenkel, autor do livro ‘BRICS e o futuro da ordem global’, de 2015. Para ele, a reunião deve ser mais “morna” e “técnica” e menos política.

Jair Bolsonaro poderia transformar essa cúpula em um grande momento da diplomacia brasileira, mas abriu mão de se projetar como líder da região”
Oliver Stuenkel.

Para Hussein Kalout, por hora, “impera uma natural competição entre os seus membros”, diz. “Do ponto de vista estritamente comercial, essa aliança preferencial está muito aquém de seu potencial”.

Criado para ser um polo alternativo à predominância dos Estados Unidos no mundo, a aproximação com o país de Donald Trump é vista com ressalva dentro do grupo. “A aproximação Brasil-EUA e o fortalecimento dos BRICS são linhas diplomáticas conflitivas”, avalia Hussein.

Ministro das Relações Exteriores na época da criação do grupo, Celso Amorim entende que o “alinhamento automático” com os EUA fragiliza o papel do Brasil no grupo. “A possibilidade de progressos na coordenação política vai ser afetada porque faltará confiança. Me parece difícil ter como membro influente dos BRICS um país cujo presidente diz que está totalmente alinhado com os EUA. Uma das características dos BRICS é que são países que agem de maneira independente e que se agruparam com base no tamanho e nessa independência”, afirma o ex-ministro.

Rússia

Vladimir Putin é a maior força política da Rússia desde 2000. Ele foi reeleito no ano passado para um mandato até 2024. Putin foi um dos entusiastas da criação do BRICS, cuja proposta é reformular as relações multilaterais.ALEXEI NIKOLSKY/KREMLIM VIA REUTERS

Para os russos, o interesse em estar nos BRICS é conseguir uma plataforma de projeção internacional maior do que o país obteria de maneira isolada. Além disso, é um espaço de aproximação com os chineses, dos quais os russos têm sido cada vez mais dependentes. A posição da Rússia, dizem os analistas, é particular no grupo, já que o país foi uma das duas superpotências no século passado e, agora, tem o papel de um país emergente.

A pesquisadora russa Anastasiia Piatachkova, professora da HSE University (Escola Superior de Economia) de Moscou, acredita que, para os russos, os BRICS são uma frente de formulação de uma nova estrutura dentro das relações multilaterais. Ela destaca alguns pontos que podem servir de convergência entre os membros, como cooperação tecnológica e educacional.

“Os países do BRICS respondem aos assuntos chaves no mundo, como revolução industrial 4.0 e ameaças cibernéticas. Isso significa trabalhar em um futuro comum”, diz.

Essa cooperação pode tornar os membros do grupo mais fortes e prontos para os próximos desafios. Também existem benefícios claros em iniciativas concretas, como a promoção de intercâmbios internacionais de educação, economia digital e a cooperação financeira”
Anastasiia Piatachkova, professora da HSE University (Escola Superior de Economia) de Moscou.

Para o professor Gunther Rudzit, os esforços de Vladimir Putin para a criação dos BRICS estavam relacionados ao questionamento de alguns pontos da ordem ocidental liberal liderada pelos Estados Unidos. Ele destaca dois pontos: o conceito de democracia e o de direitos humanos. Para ele, Putin tenta relativizar esses dois conceitos, uma vez que são aspectos sobre os quais o Ocidente costuma pressionar quando seus interesses são colocados em jogo por Rússia e China.

Rudzit afirma que os russos também tinham interesse em redesenhar, do ponto de vista da ordem econômica mundial, os organismos financeiros internacionais, principalmente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. “A Rússia sozinha nunca conseguiria fazer esse questionamento, a China sozinha pareceria uma nova potência em ascensão que estaria questionando a ordem internacional e isso atrairia a ação do Ocidente. Portanto, agindo em bloco – e o Brasil entrou de carona nesse processo – dá a impressão de uma força muito maior do que individualmente”, explica Rudzit.

Para o professor, a anexação da Crimeia pela Rússia e a queda dos preços internacionais das commodities acabaram tornando Moscou ainda mais dependente de Pequim. “A Rússia acabou sendo isolada do Ocidente”.

China

Xi Jinping, líder do Partido Comunista da China (PCC), é a maior força daquele país em 40 anos. É presidente desde 2013 e tem consolidado a China como principal parceiro de dezenas de países, incluindo o Brasil.MIKE HUTCHINGS/REUTERS

Segundo os analistas ouvidos, a China é o país de maior influência dentro do bloco e o grupo é importante para Pequim ao servir como um espaço simbólico no qual se mostra como uma potência disposta a cooperar com países emergentes, além de fortalecer uma frente de contraposição à hegemonia dos Estados Unidos.

A China é ao mesmo tempo uma superpotência e um país emergente. Mesmo com 6% de crescimento real do PIB, o país cria uma Austrália por ano e caminha para se tornar tão grande quanto os Estados Unidos em 10 anos
Jim O’Neill

Para Oliver Stuenkel, coordenador do curso relações internacionais da FGV-SP, o grupo é “fundamental” para a China porque integra um esforço sistemático de criar novas estruturas chino-cêntricas.“O Brasil é de grande importância para a China, o país não vai deixar de depender das commodities da América Latina, não tem autossuficiência alimentar nem energética. Ter uma relação estável e previsível com o Brasil é muito importante para a China”. Hoje, os chineses são o maior parceiro comercial dos brasileiros, seguidos por Estados Unidos e Argentina.

Para Stuenkel, é um grupo de baixo custo e alto valor simbólico. “É uma aliança que interessa à China, um espaço seguro, uma espécie de aliança que traz a certeza de que os países nunca se encontrarão diplomaticamente isolados”.

Gunther Rudzit, da ESPM, vai na mesma linha. “A China tem o maior peso relativo, a sede do banco do BRICS ser na China mostra essa realidade”, exemplifica. “Para Pequim, é muito importante porque se apresenta não como uma nova superpotência que busca uma hegemonia como os EUA, mas como parte de um grupo. São interesses de conveniência”.

“O BRICS representa, e a China sabe disso, uma forma muito eficaz de trazer para perto de si países que não são irrelevantes, que têm um peso regional muito grande e capacidade, portanto, de ajudá-la no balanceamento suave em relação aos outros atores, principalmente os Estados Unidos”, explica Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da FAAP. Ele também destaca que o bloco representa uma forma de cooperação importante da China com Rússia e Índia. “São países com as quais ela disputa geopoliticamente a prevalência dentro do continente asiático ou mesmo em contextos como o de não proliferação nuclear e do sistema multilateral de comércios”, afirma.

Já para o sociólogo Diego Amorim, que fez mestrado na China e viveu lá por quatro anos, os benefícios são mútuos. “A China vai ter papel fundamental em inteligência artificial e questões energéticas no futuro. Então, a China se aproveita por ser parte do grupo e os outros também se beneficiam dela”, explica.

Índia

Narendra Modi lidera o país de 1,353 bilhão de habitantes desde 2014. País tem demonstrado interesse crescente no Brasil.ADINAN ABIDI/REUTERS

O pesquisador indiano Constantino Xavier, membro do think tank Brookings Institute, afirma que para a Índia o BRICS é um legado dos anos 2000, quando o país buscava um alinhamento com outros emergentes para pressionar os Estados Unidos e outras potências ocidentais. No entanto, para o pesquisador, o bloco continua a ter uma importância simbólica. “Por exemplo, para reformar as instituições multilaterais, mas a Índia não se vê nas posições revisionistas da Rússia e da China, que estão agora em conflito aberto com os Estados Unidos e a Europa”, explica.

Por outro lado, Xavier pondera que a Índia deixou de confiar nos Estados Unidos sob o governo de Donald Trump. “Para Narendra Modi (primeiro-ministro indiano), o objetivo agora é reavivar a tradição não-alinhada da Índia, procurando um equilíbrio estratégico entre o eixo Indo-Pacífico das potências democráticas como o Japão, a Austrália e os Estados Unidos, e o eixo autoritário Euro-Asiático, liderado pela China e Rússia”, afirma.

Para a política externa indiana, o grupo BRICS representa uma oportunidade para jogar em ambos tabuleiros ao mesmo tempo”
Constantino Xavier, pesquisador indiano membro do think tank Brookings Institute

O pesquisador destaca que Rússia e China representam os interesses estratégicos “realistas” da Índia, mas o Brasil e a África do Sul “refletem a identidade e os valores democráticos” do país.

Por fim, Xavier afirma que a reunião do bloco pode contribuir para Nova Delhi reavivar a agenda bilateral com o Brasil. Para ele, essa foi uma das relações estratégicas mais importantes da Índia nos anos 2000. “No entanto, desde a saída de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) (essa relação) nunca mais recuperou. Há um crescente interesse do governo indiano na África e na América Latina, e em reativar as ligações com o novo Brasil de Bolsonaro, incluindo o fórum trilateral IBAS com a África do Sul”, diz.

África do Sul

Cyril Ramaphosa, de 66 anos, é presidente da África do Sul desde 2018. Antes, foi vice-presidente e lidera um dos principais partidos políticos em seu país. Com população de quase 58 milhões, a África do Sul é a principal potência africana.SIMON DAWSON/BLOOMBERG

A pesquisadora Elizabeth Sidiropoulos, chefe do Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais (SAIIA), diz que os problemas do mundo são cada vez mais transnacionais e que é preciso liderança para resolvê-los. Para ela, os BRICS são uma alternativa viável em um momento em que Europa e Estados Unidos estão preocupados com “seus próprios desafios”.

“A polarização global dos últimos anos fez muitos países se concentrarem apenas em suas preocupações domésticas imediatas, mas nossa interconectividade significa que esta é uma abordagem míope”, afirma.

O poder está mudando para as potências emergentes, o que aumenta a responsabilidade de grupos como o BRICS em assumir esse papel”
Elizabeth Sidiropoulos, chefe do Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais (SAIIA)

Segundo ela, para que os BRICS sejam “arquitetos” de um novo sistema global na próxima década, será preciso conciliar o desenvolvimento doméstico e o compromisso de enfrentar os desafios transnacionais mais amplos. “A próxima cúpula pode lançar as bases para essa trajetória”, diz.

Para a África do Sul, Sidiropoulos ressalta que o grupo é importante tanto pelos benefícios econômicos que pode trazer para cada um de seus membros quanto pela liderança global que pode proporcionar na determinação de novas regras do jogo, novos comportamentos e novas instituições.

A pesquisadora diz que, em sua primeira década, o BRICS inovou institucionalmente, procurando mostrar que, como um novo bloco de poder emergente, poderia fazer as coisas de maneira diferente. “O Novo Banco de Desenvolvimento, com foco em sustentabilidade e energia renovável, foi um projeto desse tipo, levando a sério a questão de como podemos voltar das cordas dos limites planetários que alcançamos”.

EXPEDIENTE

EDITOR EXECUTIVO MULTIMÍDIA Fabio Sales /EDITORA DE INFOGRAFIA MULTIMÍDIA Regina Elisabeth Silva /EDITOR ASSISTENTE MULTIMÍDIA Adriano Araujo/DESIGNER MULTIMÍDIA Gisele Oliveira /REPORTAGEM Paulo Beraldo e Vinicius Passarelli.

Confira matéria do site Estadão.

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