Nos cinco anos da Lava Jato, o coordenador da força-tarefa no Ministério Público Federal (MPF) do Paraná, o procurador Deltan Dallagnol, disse muitas vezes que a operação corria riscos. Mais recentemente, após os vazamentos de mensagens atribuídas a integrantes da operação, ele passou a afirmar que não apenas a Lava Jato está ameaçada, mas todo o sistema de combate à corrupção do país. Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, concedida na quinta-feira (22), ele pontuou de onde vêm esses ataques. Nada menos do que dos três poderes da República: de ações do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do governo do presidente Jair Bolsonaro, eleito empunhando a bandeira do combate à corrupção. E disse que as mudanças que o país espera dependem da participação da sociedade, e não apenas da Lava Jato.
“O que a gente vê no Brasil? A gente vê um movimento amplo [de enfraquecimento do combate à corrupção]. Não é um movimento restrito; não é uma pessoa ou duas. A gente vê um movimento que engloba o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, disse Deltan, para quem os vazamentos das mensagens da Lava Jato fazem parte dessa mesma agenda.
Do STF, Deltan destacou decisões recentes dificultando o uso de informações da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em investigações.
Do Congresso, dentre outros pontos, o projeto de lei do abuso de autoridade foi apontado como ação para enfraquecer o combate à corrupção – o procurador inclusive defendeu que Bolsonaro faça vetos ao projeto.
E do governo federal, Deltan citou as supostas tentativas de intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal e na Receita Federal, as mudanças no Coaf, a possibilidade de o presidente não indicar um procurador-geral da República que esteja na lista tríplice do MPF e a falta de prioridade dada pelo Planalto ao projeto anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro.
“O presidente Jair Bolsonaro, ao longo da campanha eleitoral, se apropriou de uma pauta anticorrupção. (…) Agora, o que nós vemos é que ele vem se distanciando desta pauta de corrupção quando coloca em segundo plano o projeto anticrime do juiz federal Sergio Moro. Ele coloca em segundo plano essa pauta quando ele faz mudanças no Coaf e desprestigia o auditor da Receita Federal Roberto Leonel [indicado por Moro para o Coaf], que trabalhou na Lava Jato.”
Deltan também afirmou que a sociedade, neste momento, tem um papel fundamental. “Se a sociedade brasileira quer mudança, ela tem que parar de se colocar nas cordas e esperar que a Lava Jato faça o trabalho por ela e investir tempo na hora de escolher os candidatos dela ao Congresso Nacional. (…) A sociedade brasileira vai ter que se manifestar em redes sociais, ir a público ou como for legítimo e democrático para que as mudanças positivas aconteçam e não os retrocessos.”
Deltan defendeu Moro em várias ocasiões da entrevista, embora tenha criticado o governo do qual o ex-juiz da Lava Jato faz parte. “O que nós vemos na atuação, enquanto juiz federal, de Sergio Moro, era uma atuação técnica, uma atuação apartidária.”
O procurador contou como se relacionava com Moro durante as investigações da Lava Jato. E negou que tenham atuado em conluio para punir acusados, como sugerem reportagens publicadas pelo site The Intercept Brasil e outros veículos de comunicação.
Sobre os diálogos vazados, o coordenador da força-tarefa também comentou vários outros trechos das supostas conversas. Inclusive alguns que motivaram críticas diretas a Deltan, como sobre suas palestras remuneradas, sobre o pedido para receber ingresso do Beach Park (no Ceará) e a proposta de construir um monumento em homenagem à Lava Jato.
Sobre as conversas em si, o procurador reafirmou que não reconhece a autenticidade delas, embora tenha admitido que algumas podem ter ocorrido. Mas argumentou que – tiradas do contexto ou editadas – as mensagens estão sendo interpretadas de forma equivocada, causando “muita desinformação” e alimentando a ofensiva contra o combate à corrupção.
Apesar disso, Deltan afirmou ter convicção de que os atos da Lava Jato não serão anulados e de que condenações não serão revertidas pelo STF com base nos supostos diálogos. Segundo ele, não há irregularidade alguma nos atos processuais da operação.
Por outro lado, Deltan demonstrou menos convicção quanto à possibilidade de não ser punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) por causa de sua atuação na Lava Jato – ainda que diga não ter feito nada errado.
No momento mais emocionado das mais de duas horas de entrevista, Deltan também contou à Gazeta do Povo como a divulgação das supostas conversas afetou o dia a dia da Lava Jato e sua vida pessoal e familiar.
Abaixo, leia os principais trechos da entrevista, ouça à integra da conversa com os jornalistas da Gazeta do Povo, assista aos vídeos com os melhores momentos e fique por dentro, no podcast 15 Minutos, sobre os bastidores do encontro da reportagem com Deltan.
Nos cinco anos da Lava Jato, o senhor já falou muitas vezes que a Lava Jato corre riscos. Nos últimos meses, o senhor passou a dizer que não apenas a operação corre risco, mas todo o combate à corrupção no país. Na sua visão, qual é a ameaça, hoje, ao combate à corrupção? De onde ela vem? Do Congresso? Do STF? Do governo federal? Ou vem de fora?
Nós vivemos um momento de reação [das forças que lutam contra o combate à corrupção]. Nós conseguimos colocar o pêndulo para um lado, no sentido de combate à corrupção e repressão a crimes – não importava quem fosse que tivesse praticado. Mas agora esse pêndulo está caminhando para o outro lado.
A inspiração da nossa preocupação foi o que aconteceu na Itália, onde havia uma forte atuação da Operação Mãos Limpas [de combate à corrupção], na década de 90. Mas, em certo momento, começou uma grande campanha difamatória contra a operação. Essa campanha envolveu acusações de supostos abusos ou excessos, que jamais foram comprovados. Em razão dessas acusações, a sociedade colocou um pé atrás em relação à operação e retirou o apoio que dava a ela. O que aconteceu a partir de então foi que o sistema político passou com o rolo compressor sobre a Operação Mãos Limpas na Itália aprovando uma série de leis não contra a corrupção, mas contra o combate à corrupção.
O professor Alberto Vanucci, em um texto disponível on-line em inglês, faz uma análise falando que a pauta anticorrupção passou a ser substituída pela pauta contra supostos abusos de autoridades. É o que a gente está vendo no Brasil agora.
O que a gente vê no Brasil? A gente vê um movimento amplo [contra o combate à corrupção]. Não é um movimento restrito; não é uma pessoa ou duas. A gente vê um movimento que engloba o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. O pêndulo caminhou para o outro lado.
A gente vê hoje no Legislativo, por exemplo, a passagem recente de uma Lei de Abuso de Autoridade. Todos nós somos contra o abuso de autoridade… Mas essa lei tem uma série de pegadinhas que acabam intimidando a atuação dos agentes da lei exatamente contra as pessoas poderosas. Para você ter uma ideia, essa lei coloca na mãos do investigado poder processar o investigador em uma série de casos. O investigado vai poder usar dessa lei de abuso como instrumento de intimidação e retaliação. Nós vemos também, no Congresso Nacional, tramitar e ser resgatado agora um projeto de lei que impede delações de pessoas presas. É algo que se tentou ao longo da Lava Jato e não se conseguiu, mas que agora está sendo retomado. Isso seria um grande retrocesso. Nós vemos ainda uma desidratação, em uma Comissão da Câmara, do projeto anticrime do ex-juiz federal Sergio Moro.
No âmbito do Poder Judiciário, eu destacaria três decisões recentes e uma por ser tomada.
Nós tivemos uma decisão recente da presidência do Supremo [do ministro Dias Toffoli], que impediu investigações e processos que tenham informações fiscais, bancárias ou do Coaf e da Receita Federal que não tenham sido precedidos uma decisão judicial. Essa decisão está absolutamente equivocada porque a lei determina que o agente público, que toma conhecimento de um crime, comunique [esse crime]. Se essa comunicação envolve passar dados bancários oficiais, faz parte da comunicação do crime. Mas essa decisão do ministro Toffoli acaba impedindo não só os casos da Lava Jato, mas uma série de investigações e de processos de corrupção de todo o país e também processos por outros crimes graves que envolvem muito dinheiro, como tráfico de drogas.
Outra decisão que nós tivemos, na minha perspectiva equivocada e prejudicial a investigações, foi a decisão do ministro [do STF] Alexandre de Moraes que suspendeu uma série de procedimentos fiscais da Receita contra pessoas poderosas – inclusive parlamentares e até pessoas relacionadas a ministros do Supremo. Essas pessoas não têm foro privilegiado na área fiscal. A Receita sempre pôde e poderá atuar. E mais: a Receita mostrou que essa investigação fiscal decorre de uma série de análises e critérios objetivos. O correto é que essas investigações possam ir a frente. Além de suspender essas investigações fiscais, o ministro afastou dois auditores da Receita Federal, algo que na minha visão também é equivocado.
Uma terceira decisão do STF diz respeito à competência para atuar nos casos de corrupção quando existe, em conjunto, um crime eleitoral. O STF decidiu que os casos corrupção, quando envolvem também um crime eleitoral ou uma investigação eleitoral, devem ir para a Justiça Eleitoral. Isso tem prejudicado várias investigações nossas, gerado atrasos e dificuldades no avanço de algumas investigações. Na minha visão é uma decisão equivocada no seu mérito e que produz resultados equivocados e ruins.
O Supremo ainda vai apreciar a questão da prisão em segunda instância. Vai retomar isso pela quarta ou quinta vez ao longo de dois, três anos. Há uma perspectiva de possivelmente impedir a prisão em segunda instância, o que significa garantir impunidade para pessoas poderosas que podem oferecer centenas de recursos [judiciais].
Mas os movimentos negativos contra a atuação do combate à corrupção não param, hoje, no Legislativo e no Judiciário. Nós tivemos recentemente ações do presidente [Bolsonaro] que foram lidas como uma intervenção indevida na Polícia Federal e na Receita Federal. Nós temos uma mudança no Coaf, que estava no Ministério da Justiça e foi para o Ministério da Economia. E agora foi para o Banco Central, retirando da chefia do Coaf uma pessoa dedicada e competente que mostrou seu valor e serviço à sociedade na Lava Jato, que é o auditor da Receita Federal Roberto Leonel – uma pessoa correta, íntegra, dedicada e que fez parte do coração da Lava Jato. Nós vemos ainda que a própria prioridade no projeto anticrime, do ministro Sérgio Moro, deixou de ser uma prioridade, aparentemente, para o Poder Executivo – o que, na minha visão, é uma lástima. Esse pacote fazia parte da mudança de regras necessárias para que nós possamos ter menores índices de corrupção no nosso país.
Há ainda uma espécie de campanha difamatória contra a Operação Lava Jato. Muita desinformação tem acontecido e deturpações das supostas mensagens [divulgadas pelo site Intercept]. Isso não é feito para atingir o Deltan; o interesse é impactar o coordenador da Lava Jato, enfraquecer o combate à corrupção e gerar um ambiente propício para reação [contra o combate à corrupção].
Nesse sentido também vêm possíveis punições que eu vou sofrer no Conselho Nacional do Ministério Público [Deltan responde a processos disciplinares no CNMP por causa de sua atuação na Lava Jato que, em tese, podem afastá-lo da operação].
Nos preocupa, sim, o que vai acontecer com a Lava Jato. E, num contexto mais amplo, o que vai acontecer com a causa anticorrupção.
O que o senhor acha que é mais grave no projeto de lei do abuso de autoridade? A Lava Jato espera do presidente Jair Bolsonaro o veto dos pontos considerados mais problemáticos?
O projeto de lei tem uma série de regras com palavras vagas do tipo “manifestamente legal”. Há previsões do tipo: se o juiz prender o réu quando é manifestamente indevido, ele está sujeito a uma punição criminal. Ou ainda: se um desembargador não libertar o réu quando é manifestamente devida a libertação, ele está sujeito a uma punição criminal. Mas quem vai dizer quando é manifestamente devido ou indevido? Vai ser o STF? Vão ser ministros que tem uma característica libertária [tendência a libertar os presos]? Nada contra, mas é uma característica de alguns ministros conceder habeas corpus de modo muito amplo. Muita coisa que, para um juiz de primeira ou segunda instância pode significar uma prisão devida, regular e de acordo com a lei, pode ser uma prisão manifestamente ilegal e indevida para um ministro como esse. Dessa forma, você sujeita aquele juiz ou desembargador a uma punição criminal. O que vai acontecer na prática? Quantos juízes vão ter coragem de decretar prisões de criminosos de colarinho branco? O que vai acontecer com a independência do exercício dessa profissão, especialmente quando estão envolvidos poderosos?
E mais: [a lei prevê que] se o Ministério Público não fizer o exame dos autos dentro do prazo devido, o próprio investigado pode oferecer acusação contra o membro do MP, o juiz ou o desembargador. Mas, diante do acúmulo de trabalho, é frequente que esse prazo seja ultrapassado.
Do mesmo modo, esse projeto prevê como crime você instaurar uma investigação quando manifestamente não existe justa causa – o que é um requisito só para denúncia, para acusação lá para frente, e não para instauração de investigação.
Ou seja, você tem uma série de previsões que vão colocar uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do juiz e do promotor em caso de réus poderosos e de colarinho branco. O que esse projeto faz na prática é reagir contra as investigações. A gente tem um ambiente muito forte hoje, na minha visão, de revanchismo. A Lava Jato avançou contra pessoas poderosas, identificou crimes, responsabilizou pessoas poderosas como nunca antes aconteceu no Brasil. Para alguns isso é inadmissível.
Então eu não coloco que há uma expectativa da Lava Jato em relação a esses vetos. Mas há a expectativa da sociedade brasileira, dos membros do Ministério Público, de integrantes da polícia de que se vete as previsões desse projeto de lei que produzem esse retrocesso.
O senhor chegou a conversar com o ministro Sergio Moro a respeito desse projeto? Eu imagino que ele será consultado pelo presidente Jair Bolsonaro sobre uma decisão de sanção ou veto.
Não, não conversei. Mas ele foi juiz federal por muito tempo, conhece o projeto e certamente sabe dos malefícios que ele pode trazer. Já saiu, inclusive na imprensa, que eu ele já teria feito uma nota sobre os pontos a serem vetados. A gente quer acreditar que ele possa ser ouvido nesse processo de decisão do presidente.
O fato de o presidente Bolsonaro ter familiares que, de alguma forma, foram investigadas pelo Coaf ou tiveram dados monitorados pelo órgão, como o senador Flávio Bolsonaro, pode estar interferindo nessa questão também? Não só na questão do abuso de autoridade, mas também nas mudanças previstas para órgãos como a Receita Federal e o Coaf?
O que nós vemos é que o presidente Jair Bolsonaro, ao longo da campanha eleitoral, se apropriou da pauta anticorrupção. Algumas pessoas dizem que a Lava Jato elegeu ele. Isso é um equívoco. A Lava Jato não elegeu ninguém. A causa anticorrupção não elegeu ninguém. Mas o que aconteceu foi que a sociedade, por essas e por outras razões, acabou elegendo o presidente Jair Bolsonaro. A sociedade tem uma expectativa em relação ao seu desempenho nessa pauta. Mas, agora, o que nós vemos é que ele vem se distanciando da pauta anticorrupção quando coloca em segundo plano o projeto anticrime. Ele coloca em segundo plano essa pauta quando faz mudanças no Coaf e desprestigia o auditor da Receita Federal Roberto Leonel, que trabalhou na Lava Jato. Nós vemos também que essas investigações relativas à família dele têm relação com áreas em que ele tem buscado atuar – de modo indevido, segundo a avaliação de várias pessoas – em relação à Receita Federal e à Polícia Federal. O que nós gostaríamos de esperar é que exista uma atuação do presidente coerente com aquilo que ele divulgou em campanha, com a pauta anticorrupção que ele abraçou.
Isso eu gostaria de esperar não só do presidente, mas também do Congresso Nacional. Esse é um assunto que a gente precisa discutir e enfrentar: o que foi feito pelo Congresso nos últimos anos para aprovar reformas que impeçam os crimes que aconteceram na Petrobras? E os crimes não estiveram restritos à Petrobras; eles aconteceram na Eletrobras, Ministério do Planejamento, Caixa Econômica Federal, BNDES e em vários outros órgãos públicos estaduais também. Em outros estados, o que está sendo feito?
Nós já apontamos várias falhas na legislação que geram impunidade. A Transparência Internacional e a FGV fizeram um novo trabalho e propuseram 70 propostas que podem mudar radicalmente o futuro do Brasil no tocante à corrupção, estancando esses desvios massivos de verba pública. A nossa expectativa é de que o Congresso e os Poderes do Brasil possam refletir esse anseio da sociedade e passar essas reformas. O nosso receio neste momento concreto é que aconteça o contrário.
O grande problema é que a sociedade brasileira vem colocando e colocou a expectativa de mudanças sobre a Lava Jato de modo irrealista. Nós nunca falamos que a Lava jato vai transformar o Brasil, mas ela pode ser uma semente de mudança. Se a sociedade brasileira quer mudança, ela tem que parar de se colocar nas cordas e esperar que a Lava Jato faça o trabalho por ela e investir tempo na hora de escolher os candidatos dela ao Congresso Nacional. Vai ter que investir uma ou duas horas em vez de investir cinco minutos ou pegar um panfleto na rua. A sociedade brasileira vai ter que se manifestar em redes sociais, ir a público ou como for legítimo e democrático para que as mudanças positivas aconteçam e não os retrocessos. Ela vai ter que passar a mão no telefone e ligar para deputados e senadores e pedir para que projetos sejam aprovados e outros não. Ela vai ter que pedir para o presidente vetar aquilo com que ela não concorda. Nós brasileiros precisamos parar de sermos vítimas e passar a sermos responsáveis pelos nossos destinos, senhores da nossa história. Nós precisamos assumir a responsabilidade pelas nossas vidas.
Nos cinco anos da Lava Jato houve muitas tentativas de enfraquecer a operação, vindas do Legislativo e do Supremo. O país passou por uma eleição no ano passado, que o senhor considerou que era a chance da virada e do país eleger pessoas engajadas no combate à corrupção. Mas a gente vê que não é isso que está acontecendo. O que mudou em relação aos anos anteriores?
A gente tem conversado desde o começo da entrevista sobre o copo meio vazio, mas existe um copo meio cheio. Existiu uma renovação [do Congresso] que não era esperada. Os analistas apontavam que ia ser a pior renovação política da história, porque foi aprovado aquele fundo eleitoral bilionário injetado nas campanhas eleitorais e manejado pelos caciques partidários. Mas o que a gente viu foi uma sociedade que, em grande parte, se mobilizou e promoveu uma grande renovação política. Isso mostra, sim, que a sociedade está indignada e quis mudança. Eu não estou dizendo que essa mudança necessariamente seja boa. Mas é saudável você ter um desejo de mudança quando vê um grande esquema de corrupção sistêmica impregnada.
Mas por que então agora tem acontecido essa reação [mais forte contra o combate à corrupção]? Os assuntos da imprensa tendem a cansar. Chega uma hora que as pessoas cansam dos assuntos. O que aconteceu foi um cansaço natural [do noticiário da Lava Jato], um amortecimento das pessoas em relação a essa pauta anticorrupção.
A gente fez um acordo de [devolução de] R$ 750 milhões com uma concessionária de pedágio do Paraná. E, mais recentemente, fez outro acordo de R$ 400 milhões com mais uma concessionária de pedágio do estado. A gente fez um acordo de mais de R$ 1,2 bilhão, salvo engano, com uma empresa estrangeira. Mas esses acordos não tiveram nem sequer uma grande repercussão. A gente está falando de um dos maiores acordos da história do Brasil, em um país onde é regra não recuperar nenhum centavo. Oito dos dez maiores acordos da história, em termos de corrupção, foram feitos pela Lava Jato de Curitiba. A gente está falando em mais de R$ 14 bilhões que vêm sendo recuperados. Mas a repercussão desses acordos na mídia foi praticamente zero.
Só neste ano, nós já oferecemos 17 denúncias – quando em 2018 e 2017 foram 13 ou 14 denúncias o ano inteiro. A gente ofereceu mais denúncias do que nos anos de 2017 e 2018 inteiros e a gente ainda está em agosto. Mas essas denúncias não têm mais a repercussão no noticiário que tinham antes, mesmo envolvendo o presidente do MDB, o governador do PSDB do Paraná, operadores financeiros, um senador da República muito poderoso.
Então você tem uma repercussão menor das notícias anticorrupção e do nosso trabalho. E, do outro lado, você tem um aumento de críticas baseadas especialmente naquelas mensagens do Intercept – que são críticas distorcidas, em grande medida baseadas em desinformação e falta de investigação apropriada [da parte da imprensa]. São distorções feitas a partir de supostas mensagens trocadas sem autenticidade verificada, obtidas por criminosos e que são usadas para produzir falsas acusações contra a força-tarefa.
É um momento, como aconteceu na Operação Mãos Limpas, de cansaço da pauta anticorrupção e de uma campanha difamatória [contra a Lava Jato]. Isso tudo faz com que se enfraqueça a proteção da sociedade contra os retrocessos e que se enfraqueça o suporte da sociedade aos avanços [no combate à corrupção].
A grande solução que a gente tem é a sociedade. Quem são os procuradores da República de primeira instância? Quem sou eu? Quem são os meus colegas da Lava Jato? Nós não somos ninguém na ordem do dia, nós não temos poder econômico ou político. Se é para gente chegar a algum lugar como país, vão ser vocês… a sociedade brasileira e a imprensa, através de pautas positivas e construtivas. Eu não vejo a imprensa cobrando do Congresso e das instâncias competentes a aprovação de reformas amplas contra a corrupção. Eu não vejo a imprensa cobrando ações de uma série de lugares [instituições] em que as ações deveriam estar acontecendo. Cadê as condenações proferidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal? Eu não vejo a imprensa cobrando isso, mas vejo ela cobrando supostas atuações da Lava Jato.
A gente sempre atuou na luz do dia. A gente faz reuniões internas, assim como a gente conversou por Telegram. Isso não é escondido; esse é só um meio de comunicação. Nossas reuniões feitas sobre estratégias de investigações processuais não devem ser abertas para a imprensa. Nós somos parte dos processos, ainda que impessoal. Nós sempre solidificamos qualquer ato nosso em atos processuais amparados em fatos, provas e na lei. Cadê o ato ilegal? Não tem ato ilegal praticado. A Lava Jato não deve nada, mas nós estamos sendo sucessivamente acusados de modo absurdo e distorcido de supostas irregularidades. Cadê a irregularidade? Cadê o ato?
Falaram que a gente investigou um ministro do Supremo [Gilmar Mendes]. Cadê o ato? Todos os nossos atos são solidificados em atos formais. Cadê o ato de investigação? Não tem nada, é ar, é vazio. São construções e suas suposições em cima de supostas mensagens para atacar, difamar, destruir, tirar a reputação e destruir um trabalho feito. É para criar esse ambiente em que se abrem as comportas do retrocesso.
Dessa forma, dificulta-se avanços a um ponto em que você vê agentes dos três poderes promovendo uma série de medidas que são retrocessos, no meu entendimento. E também decisões equivocadas nos avanços que vêm sendo promovidos no combate contra à corrupção ao longo dos últimos anos.
A gente vai abordar as acusações contra a Lava Jato… Mas, antes, gostaria de não perder o fio da meada sobre a imagem da Lava Jato diante da opinião pública. E queria que o senhor comentasse o fato de o ex-juiz Sergio Moro ter aceitado um cargo no ministério do presidente Jair Bolsonaro, um adversário do PT. Além disso, Sergio Moro condenou o ex-presidente Lula. Como é que o senhor vê isso? Acha que uma parte do desgaste da Lava Jato tem a ver com o fato de Sergio Moro ter aceitado o ministério de um presidente que é adversário do PT?
Tudo o que acontece é passível de interpretações. E muitas pessoas têm interesse em dar interpretações de modo a permitir um ataque à Operação Lava Jato.
O que nós vemos na atuação do ex-juiz federal Sergio Moro era uma atuação técnica, uma atuação apartidária. É uma atuação que foi submetida a três instâncias independentes do Judiciário. A própria condenação contra o ex-presidente Lula foi submetida a revisão; já foi revisada por três desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) e por quatro ministros do STJ [Superior Tribunal de Justiça]. A gente está falando de sete julgadores independentes. E desses sete julgadores, cinco foram nomeados pelo ex-presidente Lula e ou pela ex-presidente Dilma do PT. E confirmaram a condenação. Então nós vemos aí uma atuação acima de qualquer suspeita do ex-juiz federal Sergio Moro.
E temos que reconhecer que a Lava Jato não é Lula. A Lava Jato são 450 acusados. A Lava Jato é uma série de presos: Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara], Pedro Corrêa [ex-presidente do PP], Sérgio Cabral, PMDB, pessoas do PP. A Lava Jato é muito mais ampla do qualquer um desses personagens.
A minha interpretação da ida do Sergio Moro para o Ministério da Justiça é de que foi uma busca de uma transformação mais robusta que a sociedade precisa de, efetivamente, ter menores índices de corrupção e impunidade. O que aconteceu foi que, em uma série de momentos da Lava Jato, ele estava tendo que lutar contra pessoas muito mais poderosas e contra interesses poderosos. Nas palavras do ex-juiz Sergio Moro, ele estava cansado de tomar bolas nas costas e das dificuldades que a gente enfrentava.
O que eu vi foi que ao longo da Lava Jato nós lutamos para fazer um sistema que tem as internagens ajustadas para não funcionar contra poderosos funcionar. Algo inédito na história, jamais aconteceu. Pessoas que estavam na Forbes list de bilionários foram para cadeia. Deputados, senadores e ex-deputados e ex-senadores, três ex-presidentes da República acusados por corrupção e lavagem de dinheiro. Outro ex-presidente da República, o quarto, acusado por associação criminosa. Algo inédito na história do país, se não no mundo. Algo que nunca foi feito. Nós vemos que o ministro Sergio Moro foi para lá [governo] para tentar mudar as engrenagens desse sistema, para solidificar os avanços e impedir retrocessos.
Agora é claro que essa ida dele é passível de uma série de interpretações. Eu não vou fazer nenhuma avaliação ou julgamento político. O que eu posso fazer é uma avaliação técnica do papel que ele desempenhou na Lava Jato, da correção das decisões, que foram confirmadas por três instâncias independentes do poder Judiciário.
Essa é a minha perspectiva. Mas eu não afasto com isso outras interpretações. Eu não estou fazendo julgamento político.
O presidente Jair Bolsonaro deve formalizar em breve a escolha do novo procurador-geral da República. Há uma grande chance de que o escolhido não seja da lista tríplice que foi votada pelo Ministério Público. Qual que é a posição da Lava Jato sobre isso ? Pode haver uma tentativa do presidente de interferir no Ministério Público com a escolha de alguém que não seja da lista tríplice, que vem sendo respeitada desde 2003?
Para as pessoas entenderem a importância dessa escolha: uma vez escolhido o procurador-geral da República, ele vai ficar lá por pelo menos dois anos e ninguém tira ele [do cargo]. Essa pessoa tem importantíssimas funções em várias áreas. Essa pessoa é responsável por investigar e acusar senadores, deputados, ministros e por aí vai. Então a gente precisa de alguém lá [na PGR] que seja isento.
E mais ainda: o procurador-geral pode fazer muito mais contra a corrupção do que essa equipe nossa [da Lava Jato, composta por mais de 60 pessoas]. Pode fazer mais do que todos os resultados que nós conseguimos: mais de 150 condenações, mais de 450 acusados, mais de dois mil anos de prisão decretadas, mais de R$ 14 bilhões recuperados. Apesar de todo ineditismo e toda força disso, a nossa atuação é mais fraca e menor do que a atuação do procurador-geral da República.
Ele pode não só impactar todo nosso trabalho [da Lava Jato]. Por isso nós precisamos de alguém que seja isento, que não tenha laços políticos partidários, uma pessoa que tenha independência, e uma pessoa reconhecida pelo serviço público prestado ao longo das últimas décadas para a sociedade e no Ministério Público. Essa pessoa, na minha percepção, não deve ser um desconhecido, alguém que nunca apareceu, alguém que não é reconhecido.
Por que existe a formação da lista tríplice? A lista tríplice não é prevista na Constituição em relação ao Ministério Público Federal, mas ela é prevista em relação a todos os Ministérios Públicos. É uma tradição constitucional que se formou, porque, embora não prevista na Constituição, ela é uma tradição de natureza constitucional. Essa lista existe para que seja escolhido como procurador-geral alguém que tenha atuação conhecida e reconhecida, alguém que tenha atuação testada e aprovada na carreira pelos seus pares. E ninguém melhor para avaliar a atuação de um procurador do que o conjunto dos procuradores, do que seus pares, do que o colégio dos procuradores da República. Por isso que a lista tríplice é tão importante na nossa visão. Não é uma questão classista. Isso é uma questão de serviço ao país, de isenção e de independência, de atuação firme nas diferentes áreas. Por isso todos nós [procuradores] gostaríamos de ver escolhido o procurador-geral dentre as três pessoas da lista tríplice. Por isso, também, que nós não temos nos manifestado quanto a outros nomes de fora dessa lista.
Recentemente nós vimos nas redes sociais algumas pessoas defendendo o seu nome para a Procuradoria-Geral da República. Como é que o senhor vê a defesa do seu nome? O senhor aceitaria, por exemplo, uma eventual indicação sua pelo presidente Jair Bolsonaro?
Eu fico honrado e contente que as pessoas identificam em mim, na equipe e na Lava Jato muitos valores e o propósito que elas gostariam de ver guiando o procurador-geral da República. Isso é motivo de honra, contentamento e alegria para nós. Mas, ao mesmo tempo, eu vejo que nós na Lava Jato, em Curitiba, ainda temos o importante papel para desempenhar na Lava Jato no estado. O trabalho segue. Tivemos operação ontem [quarta-feira, dia 21]. Apenas neste anos recuperamos R$ 2 bilhões e oferecemos 17 acusações criminais e temos muito trabalho a fazer. A minha visão e propósito, hoje, é seguir fazendo esse trabalho em favor da sociedade. Eu acredito que a gente ainda tem uma importante contribuição a oferecer para a sociedade brasileira onde nós estamos hoje.
A sugestão do seu nome para a PGR foi feita inclusive ao próprio presidente Jair Bolsonaro por meio das redes sociais. Em uma dessas ocasiões o próprio presidente (ou pelo menos o perfil oficial do presidente da República) respondeu a esses comentários compartilhando uma publicação de uma outra página, simpática a ele, que definiu o senhor como um “esquerdista tipo PSol”. Eu queria saber como é que o senhor vê essa classificação? E também como é que o senhor se define politicamente: esquerda, direita ou centro?
A nossa definição ideológica é irrelevante para nossa atuação. Nós somos uma equipe de 15 procuradores com pessoas de diferentes visões e perfis. As pessoas são escolhidas não pelo perfil ideológico, e sim por sua dedicação, capacidade de trabalho em equipe, conhecimento, experiência no MP e assim por diante.
Mas é interessante o fato de que algumas pessoas me classificam como de direita e outras como de esquerda. Isso reflete o fato de que nosso trabalho é identificado com a causa anticorrupção e não com direita ou esquerda. Quando há pessoas dizendo que [a Lava Jato] é de direita ou esquerda é porque na verdade não está nem à direita, nem à esquerda. O que nós temos mostrado é o compromisso com causas.
Boa parte da minha geração não gosta e não busca uma identificação com direita, com esquerda no campo econômico; com progressista ou conservador no campo da moral. Mas busca uma identificação com causas específicas. Como nós temos lutado e trabalhado no âmbito da causa anticorrupção, eu não tenho me manifestado sobre outras causas ou políticas públicas porque nós queremos agregar o máximo de pessoas possíveis para essa causa anticorrupção. Seja o que for que elas defendam. A gente quer mostrar que a causa anticorrupção é uma causa neutra sobre o ponto de vista ideológico, porque não importa se você é de direita ou esquerda você tem algo bom para fazer com os R$ 40 bilhões que foram o prejuízo causado pela corrupção na Petrobras [verba que vai “sobrar” com o combate à corrupção].Você tem algo bom para fazer com os cerca de R$ 200 bilhões desviados do Brasil anualmente, segundo algumas estimativas. Se você é de direita, você pode querer cortar tributos, promover políticas de desenvolvimento, uma melhor infraestrutura. Se você é de esquerda, pode querer redistribuição de recursos, maior igualdade social, um melhor atendimento da população mais pobre na saúde e educação. Não importa a sua ideologia; você tem algo bom para fazer com o dinheiro desviado do Brasil [que vai sobrar se a agenda anticorrupção avançar].
Mas o senhor ficou surpreso com essa publicação do presidente, que o definia como um esquerdista tipo PSol?
Nós somos surpreendidos com publicações diárias que distorcem a realidade. Eu não vou abordar essa publicação específica, mas o nosso compromisso é com a causa anticorrupção independentemente de qualquer visão política que as pessoas da Lava Jato têm. Na Lava Jato, em Curitiba, nós temos pessoas que, ano passado, votaram em diferentes direções e linhas do espectro ideológico. Nós temos inclusive pessoas que votaram no Partido dos Trabalhadores no passado. Mas nosso foco e propósito é a luta contra corrupção independentemente de quem for a pessoa que tenha praticado a corrupção.
O senhor ainda mantém contato com o ministro Sergio Moro? Vocês ainda conversam sobre os temas de combate à corrupção e Lava Jato? E como que o senhor avalia a atuação dele à frente do Ministério da Justiça?
Eu não vou fazer nenhuma avaliação de natureza política. A minha especialidade, o meu tema e trabalho gira em torno combate à corrupção. Se eu tenho feito contato com ele sobre questões institucionais? Eu tenho sim. Eu tenho feito isso antes, durante e depois de ele sair da Lava Jato. É algo absolutamente natural o contato entre agentes públicos com o objetivo de aperfeiçoamento do sistema anticorrupção.
Qual era a frequência com que o senhor e Moro costumavam conversar quando ele era o juiz da Lava Jato? Era um contato frequente?
É difícil mensurar isso ao longo de cinco anos intensos de operação. O que acontece é que nós somos parte [dos processos] e protocolamos diariamente uma série de pedidos perante a Justiça. Do mesmo modo como os advogados vão ao juiz, nós também vamos ao juiz despachar.
Algo que nós sempre fizemos na Lava Jato e nunca escondemos de ninguém é que nós defendemos de modo aguerrido e dedicado o interesse público. Nós defendemos a nossa causa do melhor modo que nós podemos, nós buscamos fazer um trabalho de excelência.
Se os advogados vão despachar com o juiz, nós também vamos despachar com o juiz e apresentar nossas razões, fatos, provas e buscar uma decisão favorável àquilo que nós entendemos ser do interesse das investigações e da sociedade. Sempre dentro da lei.
Esse contato geralmente era feito pessoalmente, via aplicativo [de mensagens] ou por telefonemas?
Eu diria que boa parte dos contatos foram feitos pessoalmente e via aplicativos. Como eu estou mais em uma função de gestão, coordenação e apoio ao trabalho dos outros procuradores, muitas vezes eu não ia à Justiça. Isso fazia com que eventualmente se fizesse necessário um contato por telefone ou via aplicativo, o que é perfeitamente normal. São todos canais para você tratar com o juiz nos casos de interesse da sociedade brasileira. Essas conversas sempre seguiram a lei e a ética, sempre estiveram dentro dos limites da busca da verdade e dos valores da Justiça. Tudo que nós fizemos foi com correção e buscando o bem da sociedade brasileira. Para fazer com que um sistema que não funciona contra poderosos tradicionalmente funcionasse de modo justo contra pessoas que praticaram crimes graves.
Um dos “candidatos” de fora da lista tríplice para o cargo de procurador-geral da República, Antônio Carlos Simões Martins Soares, que chegou a ser visto como favorito, disse o seguinte em entrevista à Folha de S. Paulo: “eu sou um homem ético, sempre fui muito combativo, porém nunca usei métodos ilícitos como é comum. Agora vocês estão descobrindo que lá em Curitiba foram utilizados recursos que não podem ser considerados como lícitos, isso eu não faço. Esse é um ponto que me difere do que está por aí”. Queria saber se o senhor tem um comentário a respeito do comentário desse procurador?
Essa é uma crítica genérica. A questão é: a qual fato ele está se referindo? A qual situação específica? Se a gente souber a situação específica, a gente vai poder responder e mostrar que ele está equivocado nessa sua afirmação.
A gente está começando entrar agora nas discussões sobre os diálogos vazados e sobre os questionamentos à Lava Jato. Há alguns meses o site The Intercept, em parceria com outros veículos, vem divulgando reportagens sobre o assunto. E a força-tarefa vem afirmando que não reconhece a autenticidade dos diálogos. Como o senhor classifica as mensagens? Tudo é falso? Há alguma coisa que o senhor identifica como verdadeiro?
Nós fomos vítimas de um crime. Nós tivemos contas e aplicativos de mensagens hackeadas. Certamente lá, nessas mensagens, vai ter conteúdo verdadeiro. Mas nós não podemos ignorar que essas mensagens têm como origem um criminoso, com uma longa ficha criminal – inclusive pelo crime de falsificação e que essas mensagens, segundo já se sabe, foram editadas em vários momentos.
Nós, além disso, trocamos centenas de milhares de mensagens. Segundo uma dessas revistas, desse grupo [de veículos de comunicação que está publicando as reportagens], foram um milhão de mensagens. É impossível lembrar com detalhes de um milhão de mensagens. Quando algumas dessas mensagens vêm à tona, a gente fala em supostas mensagens porque eu não posso reconhecer coisas em relação às partes. Eu não tenho padrão de comparação. Nós não temos mais essas mensagens. Não posso afirmar que elas aconteceram no exato momento, do exato modo que elas estão sendo apresentadas. Especialmente quando elas têm por origem um criminoso.
Nós também não podemos atestar ou abrir mão da privacidade de terceiros; e nós tivemos conversas com centenas de pessoas. E, além de tudo isso, a mudança, a edição das mensagens – trocar uma palavra para inserir um “não” ou para juntar mensagens em contextos diferentes, tirar de um contexto maior – muda o significado de frases, de conversas e contextos. Lembrando que o que dá sentido de uma palavra é a frase e o que dá sentido à frase é o parágrafo. E tudo só tem sentido no contexto maior.
A gente [da Lava Jato] tinha conversas que fazia por Telegram… Nós tínhamos pressupostos implícitos nas conversas. Então [por exemplo] se eu tô conversando com vocês e eu sei que vocês valorizam o jornalismo e eu estou indo para praia, eu posso dizer para você: “Ah, que jornalismo? O quê? Eu vou ficar na praia tomando água de coco”. Nós sabemos que isso é uma brincadeira porque você e eu temos pressupostos implícitos nessa conversa que é a seriedade com que você vê esse trabalho, que é o valor que você dá para à profissão que você desempenha. Mas, se alguém pega essa conversa e tira de contexto, a pessoa vai dizer que você tava desdenhando da sua profissão, que você está desdenhando do trabalho de você. Então essas conversas todas ou essas supostas conversas que vêm sendo publicadas devem ser compreendidas dentro dessa realidade. Inclusive o fato de a gente não reconhecer essas mensagens deve ser compreendido dentro de uma realidade maior, de que a edição de uma palavra muda tudo, de que eu não posso abrir as atividades de terceiros, de que tem muitas coisas ali que você só consegue entender dentro de um contexto maior.
Então essa é a razão para a gente não reconhecer [a autenticidade dos diálogos]. Tem coisas ali que a gente lembra que aconteceu, tem coisas que a gente olha e fala: “Ah, a gente tratou desse tema, sim. Não sei se com esses exatos termos, não sei se da exata forma que está sendo apresentada”. Mas existem várias coisas que a gente tratou. E por isso, quando a gente faz esclarecimentos para a sociedade, a gente tem tratado do tema de modo geral e não daquelas mensagens específicas que a gente não reconhece. A gente tem tratado do tema, como funcionava.
O senhor acabou de dizer que há trechos reconhecidamente editados. Só para citar alguns exemplos: o que foi editado, o que é falso?
O próprio Intercept reconheceu, em determinado momento, que ele estava editando nomes, que colocou um determinado nome e depois mudou o nome. Também há a questão de horários, datas… Eles publicaram datas erradas [de mensagens]. Isso mostra que existe alguma edição. Existem conversas também que alguns colegas mencionaram para nós e falaram: “Olha, isso aqui eu não acredito que tenha acontecido; isso aqui não acredito que eu tenha falado”. Mas pode ser também um eventual esquecimento do colega, porque a gente não tem o padrão de comparação.
Por que a gente não tem esse padrão de comparação? Porque, quando a gente sofreu o ataque hacker, muito antes de qualquer divulgação [das mensagens], a gente recebeu a recomendação oficial de trocar nossos aparelhos celulares, de sair do aplicativo, porque a gente não sabia o quanto tinha sido invadido. Ali existia uma série de informações sobre investigações em andamento, uma série de informações pessoais sobre a minha vida, a vida do meu filho, a saúde da minha família, consultas médicas. Então você tinha uma série de informações pessoais sensíveis sobre aonde você vai e aonde você frequenta que pode expor a sua família a risco. A recomendação oficial quanto a isso, para proteger tudo isso, foi para apagar essas mensagens até que se pudesse ter uma noção completa do que que foi acessado. Então hoje a gente não tenho um padrão de comparação.
O senhor foi criticado por não ter entregue o celular para a perícia da Polícia Federal. Por que não entregou?
Porque a invasão não foi do aparelho celular. A invasão aconteceu do aplicativo Telegram, que fica na nuvem. Foi uma invasão que aconteceu na internet, não no aparelho celular. Por isso a Polícia Federal já esclareceu, em entrevista do dr. Luciano Flores [superintendente da PF no Paraná], que não pediu nossos celulares porque a obtenção dos celulares seria inútil para as investigações.
Esse celular ainda está com o senhor?
Não. Por recomendação oficial, eu troquei o celular e devolvi o original para a Procuradoria da República.
Algumas das conversas mostram que o então juiz Sergio Moro orientou algumas ações da força-tarefa, orientou a investigação, cobrou deflagração de novas fases da operação, pediu que provas fossem incluídas na investigação, nos processos. Os críticos da Lava Jato dizem que isso é ilegal. Moro orientava a força-tarefa?
Sobre essa questão, vou fazer uma análise geral e depois entro nas nessas particularidades. Existe muita desinformação rondando a interpretação desses supostos diálogos. O que que efetivamente existiu ao longo do tempo? Existiu uma série de contatos com o juiz, porque nós somos parte e nós vamos defender a sociedade, do mesmo modo que os melhores advogados do país defendem os interesses dos clientes deles. Do mesmo modo que um advogado vai ao ministro do Supremo, do STJ, ao juiz federal Sérgio Moro, nós também vamos. Nós fazemos questão de fazer um trabalho qualificado. E nós vamos, com as petições, com os nossos argumentos, buscar convencer o juiz. Isso aconteceu ao longo de toda operação Lava Jato. Isso aconteceu por conversas pessoais, reuniões, isso aconteceu por mensagem, isso aconteceu por telefonemas, não importa o canal. Isso é lícito, isso é legal, é regular. Isso é comum da tradição jurídica brasileira. Algumas pessoas criticaram o fato da parte falar com o juiz, mas isso é absolutamente normal na nossa tradição.
Esse é nosso compromisso e é isso que nós temos feito. O juiz, por exemplo, em vários momentos para definir uma série de coisas, quando o juiz determina a busca apreensão a realização de uma fase da Lava Jato a ordem é dele.
Várias pessoas também falaram: “Que absurdo um juiz determinando o dia da operação”. Gente, absurda é essa crítica. É baseada em pura desinformação. Todo juiz tem a prerrogativa de determinar a data da fase operação porque é ele que expede o mandado. A ordem é dele. A decisão é dele. Ele que manda fazer. Ele pode sim determinar a data e mais: é importante que no dia do cumprimento dos mandados ele esteja disponível para despachar pedidos de buscas complementares feitos pelo Ministério Público e pela polícia e para despachar pedido de liberdade ou pedidos de contenção de uma atuação do suposto abuso de poder, que pode ser alegado por qualquer réu, por qualquer defesa.
Sabe quantos atos a gente praticou em 2018 na Lava Jato, só na força-tarefa [do MPF], sem contar a polícia? Mais de 36 mil atos. Nós somos uma equipe de 60 pessoas. Falar que o juiz estava comandando isso é absurdo.
Quando você olha aquelas supostas mensagens que vieram à tona, elas dizem respeito a 15 réus, a 15 pessoas. Quantos são os nossos réus? Mais de 450. E [as conversas] dizem respeito a uma situação de cada um dos réus. Sabe quantos atos processuais são praticados em relação a cada um deles nos processos? Bem mais 10; em alguns casos mais de 100. Então, se você tomar por consideração 4.500 réus, multiplicar por 10, por 50… Mas vamos multiplicar por 10 para ser conservadores: 450 vezes 10: 4.500. Nas conversas surgiram 15 atos; 15 de 4.500. E tem gente que quer dar um protagonismo como se fosse ele conduzindo as investigações. Isso não tem pé, nem cabeça.
Além disso, o juiz federal Sergio Moro absolveu mais de 20% dos réus que a gente acusou. Então não tem nenhum sentido dizer que ele estava agindo com perfil acusador para buscar condenação a qualquer custo. A gente recorreu de 44, de 45 sentenças. Ele indeferiu centenas de pedido do Ministério Público. Nós recorremos inúmeras vezes, além dessas 44, 45 sentenças. Recorremos outras vezes também.
Então, o que vem acontecendo sim é uma atuação eficiente do Estado na investigação e processamento de crimes; e o juiz sempre atuou buscando valores de verdade e de Justiça. Quando você olha para algumas das supostas mensagens, você vê o juiz buscando a verdade. E aí tem gente que diz: ‘Ah, o juiz não pode buscar a verdade’. Nosso sistema legalmente prevê e investe o juiz com o poder de buscar a verdade. Vários doutrinadores brasileiros criticam isso, mas esse é o nosso sistema sistema. O nosso Código de Processo Penal, por exemplo, prevê a possibilidade de o juiz proativamente, de ofício, sem pedido da parte, decretar a prisão de alguém ou determinar uma busca e apreensão, ou determinar oitiva, a colheita de um depoimento de uma testemunha. O juiz pode fazer tudo isso pela nossa lei. Alguns doutrinadores vão criticar, mas essa é a nossa lei e mais alguns doutrinadores, inclusive estrangeiros defendem isso e dizem que o juiz deve sim buscar a verdade, porque a verdade é uma condição da Justiça.
Quando você olha sob essa luz as supostas mensagens, existe uma busca de valores da Justiça. Quando o juiz, segundo algumas mensagens, pede celeridade para o Ministério Público em manifestações sobre pedido de liberdade da defesa, a quem isso favorece? À defesa; agiliza o pedido dela. Isso é em favor da defesa de valores da Justiça. Você não vê o juiz tomando parte, você não vê o juiz dizendo: “Vou condenar; acusa que eu vou condenar”.
Um caso [específico] que eu quero abordar é quando o juiz teria dito para o Ministério Público: “O que são esses depósitos aqui? Vocês deixaram de fora da denúncia de propósito?” Aí o Ministério Público veio e inseriu aqueles depósitos na denúncia. Será que o juiz queria acusar as pessoas? Não. Tanto que ele absolveu as pessoas por aqueles depósitos. E mais: o juiz poderia ter feito isso dentro dos autos. Alguém poderia dizer: “Mas ele fez isso por meio de uma reunião presencial, fez isso por mensagem. Pode isso?” Pode, sim. Porque existe no direito processual brasileiro o princípio da instrumentalidade das formas, que diz que não tem problema um ato pode ser praticado por diferentes formas se você alcançar aquela finalidade.
A grande questão que deve se colocar é: teve algum direito fundamental de algum réu que foi violado com isso? Não, nenhum. Você não pode abrir mão de formas essenciais, como um prazo para o direito da defesa, como a sentença. Existem várias formas essenciais, mas existem várias formas que seguem o princípio de instrumentalidade das formas.
Nós conversamos com juiz? Sim, conversamos várias vezes. Qual foi o limite dessas conversas com o juiz? O limite foi a lei, a ética, a busca da verdade e dos valores da Justiça. Jamais existiu qualquer conluio, seja para forjar provas, seja para inventar qualquer coisa. Jamais existiu sequer uma posição do juiz dizendo vou condenar fulano ou ciclano.
Até o último dia, até o dia que saiu a sentença do caso tríplex [envolvendo o ex-presidente Lula], por exemplo, nós não sabíamos qual ia ser a postura do juiz. Se ele ia condenar ou se ia absolver. A nossa visão era de que era caso de condenação. A visão dos advogados era de que era caso de absolvição. Nós ficamos sabendo da sentença no dia que ela saiu. Esse é um exemplo de vários. E se aplica para todos os casos.
A defesa do ex-presidente Lula alega que o fato de o MP ter um contato com o então juiz Sergio Moro muito maior do que o que eles tinham acabou ferindo o princípio da paridade de armas entre defesa e acusação. Como o senhor vê essa acusação?
Descabida, completamente descabida. O processo penal brasileiro tem duas fases: a investigação e o processo. Na investigação, só atua o MP e a polícia; não atuam os advogados. Então quem vai buscar o juiz no momento da investigação é o MP, é a polícia. Só nós fazemos contato nessa fase, de modo geral. No segundo momento, do processo, atuam os advogados e atuamos nós. Mas, enquanto um advogado atua em cinco, seis casos na vara, nós atuamos em todos os casos. É claro então que nós vamos ter muito mais contato, uma frequência muito maior de contato do que determinados advogados. Isso é natural.
A secretária da [13.ª] vara [responsável pelos casos da Lava Jato] me disse recentemente: “Olha, o doutor Sérgio Moro jamais se recusou a atender qualquer advogado”. Qualquer advogado tinha as portas abertas, como nós tínhamos as portas abertas.
As conversas hackeadas foram parar no STF, que eventualmente vai analisar isso inclusive sob o ponto de vista de questionamentos da defesa de acusados. O ex-presidente Lula já fez essa solicitação. O senhor teme que a Lava Jato possa ser anulada, ou de ao menos alguns processos, Supremo?
Não, eu não tenho esse receio. Porque nossa atuação sempre foi de acordo com a lei e com a ética. Eu não acredito que nada vai ser anulado. Eu acredito que vai ter muito barulho, muita distorção, muita deturpação, muita falsa acusação. Mas não acredito que nada vai ser anulado, porque todos os nossos atos são fundamentados em fatos, em provas e na lei.
O jornal El País, um dos parceiros do Intercept na divulgação dos diálogos, divulgou nesta quinta (22) reportagem em que afirma que a Lava Jato teria evitado investigar os grandes bancos do país por receio de promover uma quebradeira geral no sistema bancário brasileiro. E ela menciona que o Ministério Público Federal não aceitou fechar um acordo de delação com o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que teria informações sobre o sistema bancário (ele acabou fechando esse acordo com a Polícia Federal). Isso ocorreu, diferentemente do que houve em relação às empreiteiras?
Essa reportagem fez afirmações irresponsáveis, levianas e sem checagem adequada. Eles nos fizeram uma série de consultas ontem [na quarta]. Mas eles não mandaram as supostas mensagens que eles iriam usar. Nós fizemos uma resposta hoje [quinta] de manhã. Eles publicaram a reportagem deles sem mencionar a íntegra da nossa resposta.
Além disso, se você ler o texto, o texto deles não bate com o conteúdo das mensagens. O que aparece nas mensagens? Aparece a gente falando: “Vamos pegar os bancos, vamos para cima dos bancos”. Aí conseguimos o mandado de busca e apreensão contra um banco, o Banco Paulista. “Opa, ótimo, excelente notícia. Vamos para cima, vamos fazer” [diziam as mensagens].
E a interpretação deles é: a Lava jato não promoveu investigações contra bancos, não foi para cima de bancos. Sem nem nos perguntar o que a gente tem em andamento; e a gente tem várias coisas sigilosas em andamento. E eles falam ainda que o acordo com o Palocci mencionaria vários bancos e que a gente não teria feito nada com relação a isso. Sabe que eles omitiram? Que todos esses fatos estão sendo apurados em São Paulo e não em Curitiba. E eles colocam como se nós, em Curitiba, não tivéssemos feito, quando todos esses fatos relatados pelo Palocci, em relação aos bancos, estão na Justiça Federal de São Paulo. E eles atribuem falsamente para nós isso. Essa reportagem foi leviana, mal informada, sem investigação, irresponsável e difamatória.
Essa reportagem foi o maior absurdo que eu vi nos últimos cinco anos de Lava Jato. E publicada por um veículo que tem encampado essa campanha difamatória.
A Lava Jato está fazendo investigações sobre os bancos?
A Lava Jato já atingiu o sistema bancário em diferentes momentos. A Lava Jato atingiu, por exemplo, quando acusou gerentes ligados à lavadora de dinheiro Nelma Kodama. Nós acusamos, salvo engano, pessoas vinculadas ao Banco do Brasil. Nós acusamos pessoas vinculadas a Caixa Econômica Federal. Nós acusamos pessoas vinculadas ao Banco Paulista. E nós temos sim outras investigações em andamento, inclusive investigações que foram coordenadas junto com a Lava Jato do Rio de Janeiro, que já fez ações relacionadas ao Banco Bradesco.
Mas, olha só, a cobrança que vem, vem sobre a Lava Jato, que já fez muito. Quantos outros casos de corrupção e casos de lavagem de dinheiro existem pelo país? Existem em todas as subseções judiciárias, em todas as capitais. Por que existe a cobrança em relação a nós e não em relação em relação aos outros? Qual é o propósito disso? Qual o propósito de focar exclusivamente na Lava Jato?
A grande verdade que a gente tem é: essas investigações são complexas, são difíceis de avançar. Nós temos feito nosso melhor para avançar e a prova de que nós temos feito o nosso melhor para avançar são os resultados já conseguidos.
E se você olhar as próprias supostas mensagens ali, o que aparece é uma empolgação em relação a esta atividade de investigação de bancos. Existiu sim uma preocupação para não gerar um risco sistêmico e não gerar uma quebra sistêmica [de bancos]. Vocês também devem ter essa preocupação. Todo mundo tem. Nosso objetivo de combater a corrupção é gerar um país melhor. O combate a corrupção não é um fim em si mesmo. Nós temos que fazer o que está ao nosso alcance, nós temos que fazer, mas fazer de modo cuidadoso.
Uma das maiores críticas que existiu contra uma operação policial nos últimos tempos foi contra Operação Carne Fraca, porque ela teria gerado um medo de a sociedade de consumir carne, de um prejuízo potencial a importações por parte de Estados estrangeiros. Ou seja, se existiu essa mensagem, mostra o nosso cuidado com fazer essa apuração, de modo a produzir o mínimo dano colateral possível. Mas em momento nenhum ninguém fala: “Não vamos fazer”. Pelo contrário, falo: “Existe isso, vamos fazer, vamos estudar, vamos estudar quais são as ações possíveis, vamos estudar como a gente pode responsabilizar de modo adequado todo mundo que está sujeito a nossa esfera de jurisdição”.
Outra reportagem publicada nesta semana com base nessas supostas mensagens, nesse caso pela Folha de S. Paulo, mostrou que o senhor teria proposto a construção de um monumento em homenagem à Lava Jato. Isso ocorreu mesmo? E qual foi o contexto?
Se aconteceu, o que tem de errado nisso?
Estou perguntando se o senhor propôs essa ideia.
E eu estou perguntando qual o enfoque sobre algo errado nisso. Porque essa é uma questão mais abrangente. Se houve esse hackeamento, que é um crime contra nós, o que que vão divulgar? Vão divulgar minhas conversas com a esposa, como já fizeram? Vão divulgar coisas sem qualquer interesse público? Qual é relevância pública disso? Tem alguma coisa errada nisso? Tem alguma sombra de ilicitude nisso? Tem alguma sombra de coisa errada? Não tem. Isso mostra de novo qual o propósito dessas pessoas? Aonde que eles vão chegar divulgando coisas que não são de interesse público? O que eles querem com isso? Qual é o critério? Quando saíram as primeiras notícias do Intercept, ele falaram que iam divulgar só o que é de interesse público. Aconteceu algum monumento? Nem isso aconteceu. E, se acontecesse, teria alguma coisa errada? Se tiver, eu respondo a tua questão.
O senhor vem sendo muito criticado pelas palestras remuneradas que faz e fazia. O senhor é acusado de tentar enriquecer ilicitamente, de tentar abrir uma empresa em nome da sua esposa. O que o senhor tem a dizer em relação a essas acusações?
Essa é uma atividade constitucional, legal, legítima, reconhecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, permitida a todos os juízes e promotores. A Constituição Federal autoriza que promotores e juízes desempenhem uma única atividade econômica remunerada, para além do exercícios de suas funções públicas – que é a atividade de docência. Tanto o Conselho Nacional de Justiça, no âmbito do Judiciário, como Conselho Nacional do Ministério Público, no âmbito do Ministério Público, já reconheceram que atividade de palestras é atividade docente e que promotores e juízes podem desempenhar isso, inclusive de modo remunerado.
As minhas palestras, em específico, já foram apreciadas em 2017 pelo Conselho Nacional do Ministério Público – que disse que, por qualquer enfoque que sejam analisadas, elas são lícitas e legítimas.
Em segundo lugar, essa é uma atividade que contribui para o debate social sobre coisas construtivas, positivas, sobre o combate à corrupção, a cidadania, a promoção da integridade. Ou seja, o que eu faço é algo convergente com a atividade diária como procurador da República. O objetivo das minhas palestras é trazer essa discussão para mesa. Tanto que a maior parte das minhas palestras é gratuita. No último ano, eu dei pelo menos 34 palestras gratuitas; 20 delas feitas em feriados, fins de semana, [período de] licença paternidade ou férias, quando eu poderia estar com a família, descansando. Três outras eu fiz à noite em Curitiba ou Joinville, que fica a uma hora e meia de carro de Curitiba É tempo que eu poderia estar descansando, poderia estar com a minha família. Ou seja, sete a cada dez palestras gratuitas que eu fiz no último ano, eu fiz com o sacrifício do meu tempo pessoal e familiar. O que só reflete qual é o nosso propósito com essa atividade de palestras que é trazer um debate, uma consciência cívica, trazer o combate à corrupção, envolver a sociedade nesse processo.
E, embora eu possa ficar com todo dinheiro das palestras remuneradas – porque isso é legal, é legítimo, é moral –, eu dou mais de 50% para atividade filantrópica. Foram, por exemplo, mais de R$ 200 mil para a construção do hospital para crianças com câncer, para tratar crianças com câncer. Parte dos valores, R$ 20 mil, foi para uma instituição Acridas, que cuida de crianças afastadas da família, que sofreram diferentes tipos de abusos. R$ 10 mil foram para uma ONG famosa, salvo engano, Amigos do Bem, que cuida da miséria e da fome. Outros R$ 10 mil foram para uma fundação [R$ 9.700] para Fundação Lia Maria Aguiar. Mais de R$ 20 mil foi para outra entidade que cuida de criança separadas da família. R$ 10 mil eu doei para uma entidade anticorrupção. E ainda eu tenho reservado numa espécie de fundo anticorrupção que eu criei, para cursos dessa atividade de anticorrupção ou mesmo para doar para entidades anticorrupção. Eu tenho ainda reservado para essa finalidade coisa de R$ 180 mil. E por que eu tô falando dessas doações, que eu faço desde 2016? Eu não tô falando para autopromoção. Estou falando para responder às críticas que têm surgido sobre esse assunto.
Surgiram críticas que [eu] buscaria lucrar de modo desmedido com as palestras. A grande verdade é que, se meu objetivo é lucrar de modo desmedido, eu não estou fazendo um bom trabalho, porque mais de 50% vem sendo doado.
Veio uma discussão também sobre abertura de empresa, que seria errado eu prestar uma palestra abrindo uma empresa. Resposta: não. Vários promotores e juízes de todo o país têm empresas para prestação de aulas. O que que você não pode fazer é a atividade burocrática dessa empresa, atuar como administrador, fazer cheques, contabilidade e assim por diante. Não tem nada errado, se eu fizesse [constituir empresa] seria legal. Mas não fiz porque entendi que era uma atividade pessoal, e que assim eu seria mais transparente. E [por causa disso] tenho que pagar tributos que superam 30% do valor das palestras.
Uma das conversas também mostra que o senhor teria pedidos passaportes no Beach Park em troca de palestras no Ceará. Isso realmente aconteceu? O senhor acha que esse pedido foi ético da sua parte?
Se eu posso receber valores por uma palestra, se eu estou autorizado a receber remuneração, se isso é legal e se eu estou indo fazer essa palestra num final de semana, por exemplo, eu posso condicionar minha ida para que meus familiares possam me acompanhar. Posso colocar outras condições para a realização dessa palestra. Isso é lícito. E a questão que você colocou: isso é moral? Eu entendo que isso é moral, sim. E eu queria entender qual é o teu questionamento moral em relação a isso para que eu possa explicar especificamente, para que eu possa colocar minha perspectiva especificamente sobre esse aspecto que você levantou.
É porque neste caso o senhor teria uma vantagem pessoal…
Sempre que eu sou remunerado pela palestra eu recebo uma vantagem pessoal pela palestra. É a contraprestação, assim como quando dou aula. Quando eu vou dar aula na Escola do Ministério Público, quando eu vou dar aula numa PUC, quando eu vou dar aula em qualquer lugar, eu sou remunerado por essa palestra. Essa é uma vantagem pessoal que eu recebo. Mas é uma vantagem pessoal legal e devida, como contraprestação pela palestra. Vários jornalistas e ministros do Supremo recebem valores até maiores por palestras e não tem nada de errado nisso. A questão é: qual é o questionamento ético?
O senhor não vê nenhuma irregularidade nisso então? Nenhum problema?
Não só não vejo, como não tem. Agora para e poder responder especificamente, qual é o questionamento que você levantaria?
Se o senhor acha que não tem nenhum problema… Era essa minha questão.
Eu não queria te colocar na parede. O que eu queria era levantar uma possível crítica que as pessoas fazem contra essa palestra, dizendo assim: “Ah, ele está fazendo essas palestras; ele está ganhando em cima da visibilidade da Lava Jato”, e suscitam esse questionamento moral.
A grande verdade, e aí eu sigo o filósofo John Rawls, é que a maior parte daquilo que você alcança na vida vem por fatores aleatórios, como a visibilidade da Lava Jato. Ainda que você tire todo o meu mérito na Lava Jato, ainda assim, se você olhar outros fatores que levam ao sucesso na vida, eles são aleatórios – como a família que você nasceu, como os talentos que você herdou e assim por diante. E o que ele coloca é que isso [a diferença entre o sucesso de alguns e insucesso de outros] deve ser tratado como uma política pública de redistribuição de recursos, sem desestimular a atividade econômica. Mas isso deve ser resolvido por política pública e por tributação. Eu pago mais de 30% do valor sob tributos dessas palestras. Existe uma redistribuição de valores, e o fato de você ter que tratar isso por políticas públicas ou tributação, não impede, não torna imoral, algo que é bom para a sociedade. Às vezes, as pessoas tem uma ideia de que servidor público não pode ganhar recursos. Pode sim. Não existe nenhuma regra moral que condene você ganhar recursos e até enriquecer, se for o caso.
Então às vezes as pessoas fazem essa crítica sem refletir sobre isso. Às vezes as pessoas estão tentando encontrar razões para criticar a Lava Jato.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pode desarquivar um pedido de reclamação disciplinar contra o senhor por causa dessas palestras. O senhor teme uma punição do CNMP?
No Conselho, eu tenho uma série de reclamações contra mim. Devo ser o campeão das reclamações disciplinares porque todo mundo que se desagrada com a operação vai lá e faz uma reclamação disciplinar contra nós. Essa questão das palestras, de novo, já foi examinada pelo conselho no meu caso especificamente. Eles decidiram expressamente que era uma atividade legal, lícita e legítima.
Mas existem, sim, procedimentos lá no Conselho que tramitam contra mim e eu gostaria de abordar dois deles. E dois dizem respeito de exercício de liberdade de expressão. Um que vai ser julgado logo é um procedimento em que está se apurando a minha conduta por ter criticado ministros do Supremo Tribunal Federal numa entrevista à rádio CBN.
Critiquei três ministros da segunda turma do Supremo Tribunal Federal dizendo que algumas decisões deles mandavam uma mensagem de leniência em favor da corrupção. Em seguida, eu torno muito clara minha crítica na própria entrevista dizendo: “Olha, eu estou fazendo uma análise objetiva, eu estou falando objetivamente e não estou imputando má-fé a ninguém. Ou seja, eu não estava fazendo uma crítica às pessoas, questionando integridade pessoal. Mas estava fazendo uma avaliação das decisões de impacto do significado social daquelas decisões na sociedade. Foi a crítica de uma autoridade pública contra uma autoridade pública, numa matéria de interesse público. Esse é o núcleo essencial do direito à liberdade de expressão.
A liberdade expressão não existe para proteger elogio, existe para proteger crítica. Se a gente não puder fazer esse tipo de crítica contra decisões, contratos, autoridades públicas, o debate social vai ser privado de uma visão dos autores que mais conhecem os casos criminais, que são os promotores, os procuradores da República.
Então, eu vejo com naturalidade essas críticas. Mas eu estou sendo questionado e possivelmente vou sofrer uma punição. Pessoas do Senado Federal têm se manifestado para que eu seja punido. Vários dos conselheiros do Conselho Nacional do Ministério Público vão ser sabatinados ainda pelo Senado, e dependem do Senado Federal para renovação do seu mandato. O que existe hoje é um ambiente favorável a nossa punição.
Outro procedimento [disciplinar] que eu estou sofrendo no Conselho Nacional do Ministério Público foi instaurado a pedido do senador Renan Calheiros (MDB-AL), alguém que sofreu várias investigações da Lava Jato. É um procedimento por causa de cerca de dez tuítes que eu fiz, dentre mais de nove mil tuítes, defendendo a votação aberta na campanha para presidência do Senado e fazendo uma análise de cenários dizendo que se ele [Renan] fosse eleito, não passariam reformas anticorrupção. Foi uma análise de cenário que eu fiz diante da ficha corrida do senador, uma análise legítima e defendendo a campanha de voto aberto. Ele me representou como se eu tivesse feito uma campanha político-partidária. A gente apresentou uma análise técnica no procedimento de todas as minhas mídias sociais. Ela mostra que eu nunca me manifestei sobre outros temas políticos que não seja combate à corrupção. Aí, o corregedor nacional [do MP] olhou tudo aquilo e disse que realmente não são manifestações político-partidárias. O que é, sim, é uma manifestação política do procurador, uma atuação política, mas não político-partidária. Mas classificou isso como quebra decoro. Quebra decoro é, por exemplo, você xingar alguém publicamente, você ir para vias de fato com alguém. Classificou como quebra de decoro e instaurou o procedimento administrativo disciplinar que vai ser avaliado pelo conselho como um todo.
Qual é a minha observação em relação a esse procedimento? Tudo o que a gente faz como procuradores é uma atividade técnica, mas também é uma atividade política. Todas as manifestações públicas são atividades políticas. Nós somos, por definição, agentes políticos. Quando eu defendo as Dez Medidas Contra a Corrupção, isso é uma atividade política. Quando eu defendi a campanha Unidos Contra a Corrupção, essa é uma atividade política. E quando defendi a campanha de voto aberto [na eleição para a presidência do Senado], é uma atividade política. A questão é uma atividade política legal e legítima ou ilegítima na minha perspectiva é uma atividade plenamente legítima que qualquer cidadão pode fazer. E um procurador não é um meio-cidadão. Eu tenho algumas vedações expressas [como membro do MP]. Eu não posso sair xingando, eu não posso fazer atuação político-partidária. E eu não fiz nada disso. Foi uma atuação política, legítima, boa, saudável e que, na minha visão, deve sim ser estimulada e não objeto de censura.
O senhor acha que nesse caso específico a liberdade de expressão corre risco caso o senhor sofra uma punição?
Com certeza. Não só a minha liberdade de expressão, mas liberdade de expressão de todos os procuradores. Depois da instauração desse processo administrativo disciplinar, eu passei a pensar várias vezes no modo como eu me manifestava na imprensa. Eu passei a frear as palavras, a medir as palavras. Não é aquilo que a gente deseja para ter livre circulação de ideias. Veja que o direito à liberdade expressão na democracia não é só um direito fundamental, ele é um dos próprios pilares de existência de sustentação da própria democracia.
O senhor mencionou que há uma pressão no Senado em cima de conselheiros do MP. Quais são os senadores que estão fazendo essas pressões dos conselheiros?
O recado que tem circulado, e que a gente tem escutado, é que existe uma mensagem clara no sentido de que parte relevante dos senadores, alguns com grande influência, espera que eu seja punido num momento de reação conta a Lava Jato. Eu conversei com um jornalista que circula muito em Brasília e ele me disse: “Deltan, eu fui a vários gabinetes, conversei com muita gente enrolada na Lava Jato. Antes você via que a pessoa estava contida, estava com receio. Hoje essas pessoas estão expansivas, elas tão indo para cima, elas estão agindo ostensivamente para que o pêndulo, que foi no sentido do combate a corrupção, que faça o caminho contrário. São pessoas que buscam hoje atacar Lava Jato, esvaziar investigações, passar projetos de lei que para dificultar operações como a Lava Jato voltem a acontecer no futuro.
Após o vazamento das supostas mensagens, houve críticas da esquerda e de críticos notórios e antigos da Lava Jato. Mas também a reação contrária de outras pessoas, como o renomado jurista Ives Gandra Martins. Em relação ao conteúdo desses vazamentos, ele afirmou que “o senhor Deltan abusou de um poder que não tem”. O que os senhor pensa desse comentário? E o senhor acredita que em algum nesses mais de cinco anos da Lava Jato a operação pode ter cometido algum excesso?
Vamos contextualizar: ele [Ives Gandra Martins] falou isso em relação especificamente a supostas investigações que a gente teria feito sobre pessoas com foro privilegiado, sobre ministros do Supremo. O que eu comentei com a minha esposa algumas noites atrás, foi: “Olha amor, eu não tenho como condenar essas pessoas que estão fazendo esse tipo de avaliação, porque se eu estivesse do lado de lá, do modo como as coisas estão sendo deturpadas, como surgem acusações falsas, eu ia achar que pode ter alguma coisa errada ali”.
Mas vamos abordar esse caso específico. Existiram investigações sobre pessoas com foro privilegiado de um modo indevido pela força-tarefa da lava jato em Curitiba? Se existiram, cadê os atos? Porque todas as investigações se consolidam em atos. Cadê os atos? Seria um ato, aliás, natimorto, porque seria algo fora da nossa competência, seria inválido. Qual o interesse que eu teria de fazer essa investigação? É claro que não tem.
O que que aconteceu ali a partir de supostas mensagens que eu não posso confirmar se existiram? Mas, mesmo se a gente supor a verdade daquelas mensagens, o que você vê não é nem uma investigação, nem uma especulação. O que existiu ali, segundo aparenta, é uma especulação sobre contas tidas no exterior por Paulo Preto, um operador apontado como vinculado ao PSDB, sabendo-se da vinculação pretérita de um determinado ministro do Supremo com o PSDB [Gilmar Mendes]. Houve uma especulação [nas conversas]: “Imagina se aparecesse alguma coisa [contra o ministro]. Mas você nunca remete um caso ao Supremo com base em especulação. Você só remete um caso Supremo quando você tem indícios concretos do envolvimento de uma autoridade com prerrogativa de foro. Sempre que apareceu [autoridades com foro na investigação], a gente mandou [para o STF]. Então o que tem é fofoca divulgada e construções em cima de fofoca, distorções em cima de fofoca. A questão é, de novo, cadê o ato?
Vamos explicar um pouquinho melhor como funciona essa investigação sobre pessoas com foro privilegiado, porque isso talvez seja uma desinformação que levou várias pessoas a erro. Existem dois tipos de situação em que gente chega a pessoas com foro privilegiado na lava jato, em Curitiba. A primeira situação é quando nós fazemos uma busca e apreensão na casa de empresário, por exemplo. Apreendemos lá uma série de materiais, e eu estou folheando os materiais e, de repente, eu encontro uma planilha. E tem três linhas nessa planilha, em cada uma das linhas tem iniciais e nomes. Têm números na segunda coluna e tem endereço na terceira. Olho as iniciais e falo: “Esse empresário é um empresário influente e essas iniciais são as iniciais dos deputados da região da atuação desse empresário”. Mas aquelas iniciais também são a de milhares de outros nomes no Brasil, e eu não sei se aquilo é um pagamento lícito, eu não sei nem que se aqueles números se referem a valores. Eu não tenho ainda a informação, participação, indício de crime para mandar isso aqui para o Supremo. Continuo olhando e tentando entender aquilo e o olho os endereços. Vou checar os endereços, e aí eu pego o endereço, pergunto, ligo para um regional, para alguém que possa saber quem pode ser. E aí checo para saber se bate o endereço ou vou no endereço no cadastro e vejo a quem pertence aquele endereço. E vamos supor que o endereço bata com aquelas iniciais e sejam de pessoas com foro privilegiado. Aí eu mando esse negócio para cima. Digo: “É uma planilha apreendida; tem números. Pode ser alguma coisa errada”. Mas, por cautela, eu mando para cima porque eu não quero ver esse processo anulado. E eu mando para cima, agora essa checagem inicial é totalmente lícita e legítima. É aquilo que a Lava Jato fez ao longo de cinco anos e nunca foi anulado.
O segundo tipo de situação em que se apresenta alguém que está sendo processado por nós em Curitiba, um réu, um empreiteiro, ele fala: “Eu quero colaborar com a Justiça”. Essa pessoa traz uma relação de fatos, uma relação daquilo que a gente chama de nexos do acordo de colaboração, uma série de termos em que ele descreve fatos criminosos de que ele participou. E, nesses termos, tem por exemplo a atuação de um senador, de um deputado. Eu recebo isso e eu mando para a Procuradoria-Geral da República. Como na Lava jato existiu um trabalho intenso nesse tipo de acordo, a prática que se estabeleceu é as negociações e as relações em geral passam a ser feitas em conjunto entre alguns membros da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba com a Procuradoria-Geral, que é competente para levar esse acordo ao Supremo. Por que há a participação de alguns membros da Lava Jato? Porque são os membros da Lava Jato que sabem todas as provas que foram colhidas com aquele colaborador, que conhecem detalhes.
Então, se em algum momento surgiu qualquer coisa em relação a pessoas com foro privilegiado, foi encaminhado para cima. Essa afirmação do jurista foi feita sem o conhecimento disso, porque existe uma assimetria na capacidade de informar nesse pseudo-escândalo, nesse quadro de sensacionalismo com essas mensagens. E aí a gente faz a resposta, oferece informações para esses veículos e eles colocam no final, na nota de rodapé: “Consultada, a força-tarefa afirmou isso e aquilo”. Ou, quando a gente dá uma entrevista, num caso a gente chegou a dar uma entrevista, esclarecer, mandar documento, não foi reproduzido o documento. E virou uma subnotícia. Tinha a notícia principal que, eram as supostas mensagens, e aí no link abaixo, que era em tamanho menor, vinha a nossa visão do caso. Então, existe uma assimetria na capacidade de levar informação para a sociedade sobre a nossa perspectiva.
A defesa do ex-presidente Lula entrou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal pedindo que toda a força-tarefa da Lava Jato seja considerada suspeita para atuar nos casos relacionados ao Lula. Entre os argumentos, os advogados destacam uma entrevista coletiva para toda imprensa com apresentação de denúncia do tríplex no Guarujá, que foi a coletiva em que apareceu o PowerPoint que acabou ficando famoso. Eles também elencam uma postagem que o senhor fez no Twitter dizendo que ia orar e jejuar para que Lula não ganhasse um habeas corpus no STF. Queria saber se considera algum desses episódios um excesso? De alguma forma se arrepende do PowerPoint ou dessa manifestação no Twitter? Arrepende-se, se não do conteúdo, ao menos da forma como as questões contra Lula foram apresentadas?
Essa é visão a de advogado que quer anular processo. Quando você olha o tuíte, eu não mencionei sobre o caso do Lula. Eu mencionei sobre a questão da prisão em segunda instância. Essa é uma questão que impacta não o caso do Lula, mas outros casos de réus poderosos, de réus de colarinho branco. Essa é uma lição essencial, vital, não não só para Lava Jato, mas para a sobrevivência da perspectiva da punição de pessoas poderosas no nosso país. Essa é a decisão que vai dizer se a nossa Justiça vai ser ser faz-de-conta ou se a nossa Justiça vai ter uma perspectiva de efetividade em relação a poderosos.
Em relação a essa decisão, em um momento específico, eu me manifestei de modo legítimo dizendo que eu ia estar orando pelo melhor do país. Eu oro não só nessa ocasião. Eu oro todas as noites, eu oro todos os dias pelo melhor do país. Eu oro todos os dias para que o nosso país progrida, para que tenha menos corrupção, menos impunidade. E não tem nada de errado nisso. Nesse caso específico, eu manifestei isso. Isso gerou uma certa polêmica. Mas eu tenho direito à minha expressão religiosa, assim como como vocês têm, assim como outras pessoas têm. Eu estava na mídia social. Não estava falando falando em nome do Ministério Público. Estava expressando a minha fé de modo particular sobre uma questão de relevância nacional. Essa questão ia ser decidida no habeas corpus levado pelo Lula ao Supremo Tribunal Federal. Mas a minha preocupação não era com ele. Minha preocupação é muito mais geral. Essa questão afeta todo mundo, circunstancialmente estava no caso dele.
Em relação à outra questão [à entrevista do PowerPoint], a gente fez uma prática de entrevistas coletivas. A gente não fez uma, duas. A gente fez dezenas [de entrevista coletivas] para apresentar nossas ações. Diversas delas a gente fez com gráficos, com slides, com imagens. Mas o que tem de particular com relação à entrevista coletiva do ex-presidente Lula é que foi uma entrevista em que a pessoa acusada tinha uma relevância pública muito maior, que talvez seja o maior líder da esquerda hoje. Mas o fato de ele ser o maior líder da esquerda, o fato de ele ter ou não ter tido um bom desempenho no seu governo (não vou entrar nesse mérito), o fato de ele ter sido um bom ou mau pai de família, nada afeta o nosso julgamento no caso concreto. O que a gente tem que falar é: “Se tem provas de crimes e se existem provas de crimes a gente tem que submeter isso para justiça para avaliação”. É o que a gente fez. E houve uma condenação, que foi confirmada por sete julgadores de dois tribunais independentes, cinco dos quais foram nomeados por governos do PT.
Então, existiu uma acusação legítima. Mas, se a forma de apresentação foi adequada ou não foi adequada, sempre é uma posição privilegiada você analisar as coisas sob o privilégio de uma visão retrospectiva. Você olha a crítica e você muda lá atrás para evitar a crítica; sempre você poderia tentar modular.
Mas esse é um caso em que não teria como evitar crítica porque a movimentação que existe em torno do ex-presidente Lula, muito mais do jurídica, é política. São pessoas que veem nele uma esperança de uma visão de mundo, uma esperança de projeto de poder, uma esperança de visão ideológica. Mas a minha visão é outra, minha visão é técnica. Minha visão é que essa pessoa praticou crimes, fatos definidos na lei como crimes. Existem provas disso. Se existem provas, eu tenho que levar ao judiciário. Eu levei, mais de uma vez, em três casos em Curitiba.
Mas pessoas focam em Curitiba como se houvesse uma espécie de perseguição política. Esse argumento é uma teoria da conspiração. Ele [Lula] responde, salvo engano, a oito processos criminais no país: quatro em Brasília, mais que os três de Curitiba, e um em São Paulo. Na maior parte dos casos, por corrupção e lavagem de dinheiro. Salvo engano, em Brasília uma das acusações envolvem propinas de US$ 40 milhões. Tem que dar uma checada, não lembro se são reais ou dólares [de fato, são US$ 40 milhões]. Além disso, salvo engano, duas das acusações foram feitas pelo procurador-geral da República que é um técnico, pelo menos uma foi. Ele foi escolhido, aliás, pela ex-presidente Dilma.
Você tem essas acusações dessas diferentes pessoas e essas acusações são julgadas por diferentes juízes de Brasília, São Paulo e Curitiba. Juízes diferentes. Em Curitiba mesmo, só uma das sentenças [contra Lula] foi do ex-juiz Moro. A outra foi da juíza Gabriela Hardt e a terceira, que está para ser proferida, vai ser do juiz [Luiz Antonio] Bonat. Essas acusações são revistas por três desembargadores de diferentes regiões e por cinco ministros do STF; no caso da condenação do triplex foram quatro ministros porque um estava ausente.
Claro que a defesa tem que fazer o seu melhor para defender o réu. Ela tem que defender mesmo. Mas é teoria da conspiração buscar centenas de agentes públicos que atuam nos casos, com diferentes visões de mundo, e colocá-los em um balaio e dizer que eles estão traindo as funções e deveres dos seus cargos.
A atuação da Justiça é técnica. A nossa atuação é punir a corrupção seja de quem for. Veja que a Lava Jato não atingiu só o Partido dos Trabalhadores. Os antagonistas [do PT] também foram atingidos. Eduardo Cunha está preso até hoje. Ele é ex-presidente da Câmara dos Deputados, uma pessoa altamente poderosa, que foi protagonista do impeachment e que foi considerado o principal antagonista do PT. O ex-senador Aécio Neves foi acusado de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Ele não está preso porque tem um cargo que dificulta e impede a prisão; o caso dele não é submetido à nós e sim à Procuradora-geral da República. Mas é acusado em decorrência desse mar de investigações que foi a Lava Jato. Aécio foi o principal antagonista da ex-presidente Dilma nas eleições [de 2014]. Você vê uma atuação da lava Jato que foi de A a Z. Foi do PT ao MDB. Só a colaboração da Odebrecht indicou 415 políticos e 26 partidos.
Aí vem toda essa cobrança em relação à gente. Mas a maior parte desses casos dos 26 partidos, dos 415 políticos, foram desmembrados pelo país. E aí vem uma cobrança da nossa inação, quando a gente foi quem mais produziu resultado e não existe uma cobrança nem sequer semelhante em relação aos casos que foram desmembrados e espalhados pelo país, para praticamente todos os estados da federação.
A divulgação das conversas de alguma forma mudou a sua rotina e da sua família? Como isso o afetou pessoalmente?
É claro que isso nos afeta. É claro que isso gera uma indignação. Claro que isso gera uma frustração. A gente saiu da zona de conforto para fazer todo o trabalho que a gente fez, trabalhando noites, finais de semana, diuturnamente, não desligando do negócio, em folgas. E agora que a Lava Jato vai diminuindo um pouco a sua visibilidade, há acusações falsas e infundadas feita sobre o trabalho. É claro que isso nos impacta.
Eu tenho filhos pequenos. Eu tenho um filho de 5 anos que às vezes ele vem conversar comigo, especialmente quando ele tinha 4 anos… Ele tem medo de algumas coisas. A minha filha que agora chegou aos 4 anos. Ela começou a ter os medos, que são os medos dos 4 anos. Medo de monstro, medo de coisas… E o que eu digo para o meu filho quando ele vem me relatar medos eu digo assim: “Filho, você é corajoso”. E ele diz: “Não, papai, eu não sou. Eu tenho medo”. Eu falo: “Não, filho. Todos nós temos medos. Todos nós sofremos. Agora, coragem não é você não ter medo. Coragem é você enfrentar os medos que você tem.”
Coragem é você enfrentar os medos de retaliação de poderosos, você enfrentar, mesmo diante dos perigos que isso representa para tua vida pessoal, profissional e familiar. Coragem é você enfrentar a perda de privacidade. Coragem é você enfrentar os riscos que a gente tem. Coragem é você enfrentar mais de uma dezena, duas dezenas de processos no Conselho Nacional do Ministério Público, ações judiciais contra nós para fazer o trabalho que tem que ser feito. Coragem é você enfrentar o medo da sobrecarga de trabalho, das pressões que vêm de todos os lados. Coragem é você enfrentar esses medos.
E o que nunca faltou a força-tarefa da lava jato em Curitiba foi coragem. E gente vai seguir trabalhando com coragem, seguindo um propósito. Nossa bandeira, o nosso foco, o nosso alvo, o nosso sonho é ver um Brasil melhor. É ver um Brasil com menos corrupção e menos impunidade. E não importa o que aconteça… Não importa as circunstâncias nosso redor, a gente vai manter a nossa fé e vamos nos manter caminhando, trabalhando duro por esse propósito, que é aquilo que a sociedade nos incumbiu de fazer e é o nosso compromisso desde o começo da Lava Jato.
E a força-tarefa? Mudou algum procedimento depois da divulgação das conversas?
Com certeza. A gente passou a ter mais cuidados. Quando você está conversando em um grupo de mensagens, você conversa com a liberdade, com a expectativa de privacidade e da confiança que você tem nos pressupostos implícitos da conversa. Então, quando você conversa com um amigo ou alguém que você conhece há anos, e você está conversando sobre a Lava Jato ou sobre a sua profissão, você pode fazer brincadeiras que, fora daquele contexto, podem ser mal-interpretadas. Mas, naquele contexto, a pessoa te conhece e sabe que você não vai fazer coisas erradas. Você faz brincadeiras e tem liberdade de falar coisas sem explicar os pressupostos daquela coisa que você tá falando. Sem falar das reuniões que você tem sobre aquela coisa. Você fala livremente.
Mas, quando você vê que pode ter a sua privacidade violada por criminosos e se aceita que isso seja jogado no ventilador, mesmo quando não tem interesse público envolvido como é o caso desse suposto monumento… Quando jogam e divulgam a sua privacidade para produzir críticas e má interpretações, para produzir distorções, você passa a colocar os pressupostos nas suas mensagens que você não colocaria. Você passa a ter mais cuidado no modo como escreve as coisas para que não seja passível de má interpretação.
É claro que todo mundo foi afetado, sofre e receia. Nós somos humanos, como vocês são. Nós não deixamos a nossa humanidade. Nós não somos super-heróis e não temos prerrogativas anormais. Nós somos apenas pessoas que querem um Brasil melhor, que trabalham para isso e estão enfrentando, do melhor modo que podem, as dificuldades para poder realizar seu trabalho em benefício da sociedade brasileira.
O senhor gostaria de falar algo mais, de dar uma mensagem mensagem final?
Eu queria agradecer a vocês, agradecer por esse espaço, por essa oportunidade. É sempre um privilégio estar falando com a sociedade brasileira por meio da imprensa. A imprensa desempenha um papel essencial na nossa República, inclusive quando faz críticas, críticas fundadas. Várias críticas nos ajudam a aperfeiçoar nossa atuação. Isso é positivo. Mas a gente reclama não da crítica fundada, investigada. Não é do trabalho do jornalismo bem feito. Mas da construção deturpada em relação a determinadas mensagens. Isso é importante deixar claro, a imprensa é importante, imprescindível, o seu trabalho é valioso. Nós devemos receber críticas, como todas as autoridades pública, como a própria imprensa está sujeita a críticas. O que eu fiz foi simplesmente criticar coisas e modo de proceder com os quais eu não concordo. Nós vamos aperfeiçoar o nosso trabalho, a partir de qualquer crítica que a gente receba. Críticas são legítimas. As discordâncias que eu apresentei são em relação ao modo de proceder, são acusações que não têm base na realidade.
E eu queria deixar uma mensagem final dizendo que, se a sociedade brasileira não continuar com a gente, todo o nosso trabalho foi e vai ser em vão. A gente vai repetir a experiência italiana, em que depois de avanços, houve retrocessos. E vamos continuar a ser conhecido como o país da corrupção, o país da impunidade dos poderosos.
Se a gente quer a mudança, não adianta esperar que a gente [a Lava Jato] vai promover essa mudança. São vocês que vão ter que tomar as rédeas nas suas mãos e fazer essas mudanças acontecerem. Isso acontece por meio de posicionamento das pessoas, por meio de cobrança dos representantes eleitos, isso acontece por meio do voto consciente, do investimento do tempo no voto. Isso acontece inclusive por meio da pequena doação eleitoral, de R$ 50, R$ 100. Ela eve ser feita e deve ser estimulada, porque se você doar R$ 60 para o seu candidato, você vai pensar dez vezes em quem você vai votar, vai pesquisar melhor, você não vai esquecer o nome da pessoa em quem você votou. Se você quer a possibilidade de renovação, vai ter que fazer essa doação, sim. Porque nas últimas eleições, como resposta ao escândalo da Lava Jato, em vez de reformas anticorrupção, foi criado um fundo bilionário para suprir a falta que fez as propinas para as campanhas. Como resposta a isso, em vez de o Congresso Nacional ampliar as formas de campanha para discussão de ideias, baratear campanhas eleitorais impedindo as produções hollywoodianas, o que se fez foi criar um fundo bilionário que em vez de ser distribuído democraticamente entre todos os candidatos foi concentrado nas mãos dos caciques eleitorais. A grande maioria [dos recursos] do fundo eleitoral foi para uma minoria que já tinha sido eleito e que já tinha exercido mandato no Congresso Nacional. Existem pesquisas que mostram, em relação a deputado federal, que quanto mais dinheiro a pessoa investe. maior número de votos ela recebe. Ou seja, o dinheiro impacta sim o resultado eleitoral. Se você quer renovação, um candidato bom ganhando as eleições, você vai ter que botar a mão no bolsa e ajudar os candidatos com pequenas doações eleitorais. Passar a ter a prática das pequenas doações, R$ 50, R$60, é saudável e deve ser estimulado. Isso faz parte do exercício da cidadania.
Eu falo isso de modo apartidário, não importa se você é de direita, esquerda ou centro, não importa o espectro eleitoral. Faça isso em relação ao seu candidato. Você vai exercer cidadania também de modo positivo e construtivo.
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