Durante a década de 1970, a esquerda armada cometeu várias execuções no Brasil, parte delas dentro da própria militância, sob a justificativa da resistência comunista contra o regime militar. Os chamados “justiçamentos” eram tribunais sem possibilidade de defesa, nos quais integrantes considerados traidores ou dissidentes eram condenados à morte pelos membros.
As execuções ocorreram principalmente entre 1971 e 1973, quando o governo de Emílio Garrastazu Médici acirrou a combate às organizações clandestinas. A Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro criado por Carlos Marighella e principal braço armado da esquerda, foi o maior executor dos justiçamentos – inclusive contra os próprios membros da organização.
O grupo Terrorismo Nunca Mais, que registra as mortes e violações dos direitos humanos causados pela esquerda armada durante o regime militar, descreve os justiçamentos como uma “consequência inevitável de uma doutrina genocida”.
“Não foram mortes causadas na paixão ou no ódio de um confronto. Não foram mortes involuntárias, surgidas por acaso, no fragor de alguma ação violenta. Não foram mortes aleatórias, cujos nomes só surgiam depois da explosão de uma bomba, depois de um assalto, depois de um sequestro”, diz o grupo em um comunicado. “O justiçamento praticado pelos comunistas foi o crime premeditado, extremadamente planejado, o crime frio e cruel de uma doutrina que sobrepunha os fins aos meios”, acrescenta.
Carlos Eugênio Paz, último comandante militar da ALN e um dos principais personagens da guerrilha contra o regime militar, confessou recentemente ter participado pessoalmente da execução de um integrante da chamada “coordenação nacional” da ALN. A confissão foi inédita, embora o ex-guerrilheiro já houvesse admitido em declarações anteriores que tinha participado da reunião do “Tribunal Revolucionário” que determinou a execução.
“Tomamos aquela decisão coletivamente. Era uma decisão de organização. Não assumo sozinho”, disse Paz em 2012. Segundo ele, a ALN considerou que o militante passava a ser um perigo para a própria organização pela quantidade de informações que tinha e pelo fato de estar abandonando companheiros à própria sorte em combate.
O militante executado foi Márcio Leite de Toledo, ex-estudante de sociologia, 26 anos, que foi enviado a Cuba para treinamento de guerrilha e voltou ao Brasil clandestinamente. Após o retorno, na mesma época em que comandantes da ALN foram capturados pelos órgãos de segurança do regime militar, Toledo passou a discordar das táticas da organização. Como resposta, o comando da ALN considerou Toledo perigoso para a organização e um grupo de quatro guerrilheiros decidiu pela execução dele.
O assassinato foi admitido pela organização também em comunicado: “A Ação Libertadora Nacional (ALN) executou, dia 23 de março de 1971, Márcio Leite Toledo. Esta execução teve o fim de resguardar a organização. Uma organização revolucionária, em guerra declarada, não pode permitir a quem tenha uma série de informações, como as que ele possuía, vacilações desta espécie, muito menos uma defecção deste grau em suas fileiras”.
Loucos da extrema-esquerda e loucos da extrema-direita
Outro caso semelhante envolveu Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, da Resistência Armada Nacionalista (RAN). Alvarenga foi executado com quatro tiros por um comando da ALN em 28 de junho de 1973, na sala dos professores do colégio Veiga de Almeida, no bairro carioca da Tijuca, onde dava aula de história.
“Francisco foi vítima dos dois lados: os loucos da extrema direita o torturaram e os loucos da extrema esquerda o mataram”, disse o ex-capitão do Exército Cláudio Heitor de Alvarenga, irmão de Francisco.
Para a execução, foi feito um levantamento do histórico do militante, realizado por Maria do Amparo Almeida Araujo, ex-militante da organização e, mais tarde, presidente do grupo Tortura Nunca Mais.
“Recebi a tarefa de observar uma pessoa, como observava muitas outras coisas. Monitorei ele por uma semana”, disse Amparo, que foi secretária de Direitos Humanos da prefeitura do Recife. Ela contou a história pela primeira vez no livro Mulheres que Foram à Luta Armada (Globo, 1998), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, mas disse não saber quem foram os responsáveis pela execução.
“Fazia parte da conjuntura da época. Estávamos preparados para tudo. E tínhamos uma disciplina, podíamos ser punidos”, conta. “Uma vez, por ter saído para passear, tive que moer 10 quilos de permanganato [para fazer bombas]. Não vou entrar no mérito se faria de novo, se estava certo ou errado. Assumo minha responsabilidade, que é a mesma tendo feito o levantamento ou se eu tivesse apertado o gatilho”, disse.
Os militantes executados somam-se à lista das 120 vítimas da esquerda armada, disponível no site do grupo Terrorismo Nunca Mais. Mas as mortes não entraram na conta da Comissão da Verdade, criada pela presidente Dilma Rousseff para apurar os assassinatos durante o regime militar. De acordo com o colegiado, as execuções da esquerda armada foram crimes comuns, portanto já prescritos.
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