Com receita que ultrapassa os R$ 3 bilhões ao ano, obtida majoritariamente das anuidades de seus inscritos, os conselhos profissionais correm o risco de ter suas finanças fortemente afetadas pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada recentemente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao Congresso. Além de transformar os conselhos – hoje tratados como autarquias – em entidades privadas, o ministro quer eliminar a obrigatoriedade da inscrição dos profissionais nesses conselhos para poderem trabalhar. Na prática, isso significará que eles não precisarão pagar as anuidades.
Pressionado, Guedes recuou e sinalizou que o texto será reescrito para deixar claro que alguns conselhos – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) – não serão atingidos. Na prática, o recuo significa que ao menos parte dessas entidades continuará a receber as anuidades.
Os conselhos de classe têm receita bilionária e as anuidades dos inscritos representam a maior fonte de arrecadação. Atualmente existem 29 conselhos no país, que reúnem advogados, médicos, engenheiros, músicos, corretores de imóveis, entre outros profissionais. Levantamento feito pela Gazeta do Povo comparou as receitas dos maiores conselhos: Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e Conselho Federal de Medicina.
OAB
Dos conselhos analisados, as seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) são as que mais dependem de seus associados. Em 2017 (últimos dados disponíveis), as anuidades representavam em média 83% da receita total do órgão. Os valores das contribuições referentes a 2018 são ainda mais incompletos, o que inviabiliza calcular o montante arrecadado nesse ano.
A regional em que as contribuições têm peso maior é a do estado de São Paulo. Em 2017, a OAB-SP arrecadou R$ 304 milhões, sendo que R$ 285 milhões vieram das anuidades – ou seja, 94% do total. Já a Ordem do Rio Grande do Norte é a menos dependente de seus inscritos (38%). Foram R$ 7,5 milhões vindo das contribuições, numa receita total de R$ 20 milhões.
Apesar de não ser o conselho mais rico, a OAB é o que mais arrecada com as anuidades. Dados publicados no portal da transparência indicam que o órgão arrecadou ao menos R$ 529 milhões em 2017 por meio das anuidades.
O montante é sem dúvida superior, já que nove seccionais – algumas entre as maiores do país – não revelam seus dados. São elas: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Piauí e Roraima.
O Observatório Nacional da Advocacia, instituto crítico à OAB, estimou informalmente que em 2017 a instituição arrecadou R$ 1,3 bilhão com seus inscritos. Desse montante, R$ 900 milhões viriam das anuidades, o restante do exame da Ordem.
Questionado sobre a receita dos últimos anos com as contribuições, o conselho federal da OAB não respondeu à reportagem.
,Confea
Embora dependam menos de seus inscritos, os Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (CREAs), que compõem o Confea, são as entidades com a maior receita.
Em 2018, os conselhos de engenharia arrecadaram juntos pelo menos R$ 889 milhões. Desse total, R$ 443 milhões são de anuidades de pessoas físicas e jurídicas. Também nesse caso, o montante arrecadado certamente é maior, já que alguns conselhos não divulgam ou divulgam parcialmente seus dados.
Em média, as anuidades representam 50% do total recebido nos conselhos de engenharia. A seccional do Alagoas é a que menos arrecada com seus inscritos em relação à receita total: em 2018, a receita do conselho foi de R$ 11,7 milhões, sendo R$ 3,3 vindo dos inscritos – isto é, 28% do total. A regional que mais depende da verba dos inscritos é a de Minas Gerais. Em 2018, foram R$ 53,7 milhões – o equivalente a 55% da receita total, que foi de R$ 98,4 milhões.
CFM
O Conselho Federal de Medicina (CFM) está no clube das entidades mais ricas graças às contribuições de seus inscritos. Em 2018, o montante angariado pelos conselhos regionais com anuidades foi de pelo menos R$ 354 milhões. Também nesse caso o valor é subestimado, já que as seccionais do Rio de Janeiro e Alagoas não divulgam os dados. A receita total no mesmo ano foi de pelo menos R$ 472 milhões – ou seja, as contribuições dos inscritos representam 75% do total.
O conselho regional de medicina que menos depende das anuidades é o de Roraima (33%). Foram R$ 686 mil sobre um total de R$ 2 milhões. O conselho mais dependente da verba dos inscritos é o do Maranhão, onde as contribuições representam 80% do total. No ano passado, a entidade arrecadou R$ 4,6 milhões graças a seus associados; a receita total foi de R$ 5,7 milhões.
Fiscalização do TCU
Como são autarquias, entidades públicas, os conselhos profissionais são fiscalizados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), com a exceção da OAB.
O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, em julgamento, que o TCU não tem responsabilidade de fiscalizar os recursos da OAB. Mas a situação pode mudar em breve. Em outubro do ano passado, o TCU decidiu que a Ordem dos Advogados deve submeter suas contas ao tribunal a partir de 2021.
O ministro relator da ação, Bruno Dantas, criticou a Ordem pela “baixa transparência” e afirmou que a entidade, pelo papel fundamental de vigilante do poder estatal, “deve servir de exemplo a outros conselhos profissionais e apresentar uma gestão transparente e aberta ao controle público”.
Os outros conselhos prestam contas ao TCU anualmente, por meio da apresentação de relatórios de gestão. A cada ano, são selecionadas as entidades cujas contas serão julgadas pelo Tribunal. Segundo o TCU, essa seleção obedece a “critérios de relevância, materialidade e risco definidos por decisão normativa”.
No entanto, os últimos dados públicos sobre a prestação de contas dos conselhos profissionais são de 2013. Naquele ano, os valores geridos pelos conselhos profissionais em todo o território nacional chegaram a R$ 3,3 bilhões anuais, segundo levantamento do próprio TCU.
A entidade mais “rica” na época era o Conselho de Engenharia e Agronomia, com uma receita de quase R$ 120 milhões, seguido pelos conselhos de Medicina (R$ 91,8 milhões), Enfermagem (R$ 74 milhões) e de Contabilidade (R$ 51 milhões).
Valor das anuidades
A OAB, com mais de 1,1 milhão de advogados inscritos, cobra taxas de anuidades que variam de acordo com o estado. Em 2019, as mais baixas são de R$ 750 e R$ 780 em Alagoas e Maranhão; as mais caras são pagas no Rio Grande do Sul (R$ 1.118), Rio de Janeiro (R$ 1.079) e Goiás (R$ 1.075). Os valores, contudo, podem ser menores, pois as seccionais oferecem descontos gradativos para pagamentos antecipados ou à vista.
O Conselho Federal de Medicina contabiliza 474.504 médicos inscritos e cobra neste ano R$ 750 de anuidade para pessoas físicas, mas garante descontos para pagamento antecipado que variam de 3% a 5%. Há também isenções em alguns casos: médicos militares, profissionais acima de 70 anos ou portadores de doenças graves.
Já para as pessoas jurídicas, os valores variam de acordo com sete classes categorias de capital social. A menor delas é a faixa de capital social até R$ 50 mil, com valor da anuidade de R$ 750. A maior é acima de R$ 10 milhões, com anuidade de R$ 6 mil. Também há descontos nesses casos.
O Confea, da área de engenharia e arquitetura, cobra taxas anuais diferentes para os profissionais de nível superior (R$ 558) e os técnicos de nível médio (R$ 279,38). Já para as empresas de engenharia ou arquitetura os valores da anuidade partem de R$ 528,48 (para as que têm capital social até R$ 50 mil) e chegam a R$ 4.227,84 (para capital social acima de R$ 10 milhões).
O impacto do fim da obrigatoriedade das anuidades
Estimar o impacto financeiro da PEC sobre o orçamento dos conselhos profissionais não é tarefa fácil. Mas é provável que a queda de receita dos conselhos venha a ser significativa se a proposta for aprovada.
Um bom exemplo comparativo é o caso dos sindicatos. O fim da contribuição sindical obrigatória, aprovado em 2017, fez com que a receita dos sindicatos despencasse. A CUT, por exemplo, em 2017 recebeu R$ 54 milhões. Em 2018, já após o fim da contribuição obrigatória, arrecadou apenas R$ 2,5 milhões.
OAB contra a PEC
A PEC que altera os conselhos recebeu críticas das entidades profissionais. Em nota, a OAB disse que a medida “ceifa um dos mais importantes instrumentos de defesa da sociedade na fiscalização profissional, com o claro e único propósito de engessar e silenciar as entidades”.
Segundo a Ordem, o exame para ingressar na OAB garante “o mínimo de qualidade dos profissionais” diante “da multiplicação sem precedente dos cursos de graduação em Direito, nem sempre amparados nos devidos parâmetros de qualidade”.
Antes mesmo da apresentação da PEC ao Congresso, a possibilidade de mudanças no sistema de financiamento já era alvo de críticas dos conselhos.
Em abril, o Conselho Federal de Medicina, em carta aberta a seus inscritos, criticou quem defende ou quer alterar as regras de arrecadação. E disse que quem faz isso “age de má fé, manipula a verdade e induz ao erro”. Sobre o uso de suas verbas, a entidade garante que “os recursos arrecadados com as contribuições têm sido administrados de forma idônea e responsável”. Segundo o CFM, as anuidades são revertidas para a formação e atualização dos médicos, além de palestras, treinamentos, simpósios e plataforma EAD (educação a distância), entre outras finalidades.
Apesar das críticas, a OAB e o CFM não estariam no rol das entidades afetadas. Embora não diga quais, a PEC prevê exceções para conselhos que realizam atividades que afetam vida, saúde, segurança e ordem social. A intenção do governo é de regulamentar isso em um segundo momento, por meio de projeto de lei.
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