Cantor e compositor sai de cena aos 88 anos com legado que atravessa diferentes gerações. Pesquisador e artistas refletem obra do baiano, considerado o pai da bossa nova
Recluso e pouco dado aos holofotes, João Gilberto (1931-2019) partiu aos 88 anos. Considerado um dos pilares máximos da Bossa Nova, o filho de Juazeiro (BA) trilhou com a mesma intensidade o desejo de experimentar e subverter as regras da indústria fonográfica. A despedida será aberta ao público e o corpo do compositor, velado hoje, no Theatro Municipal do Rio.
No intuito de decifrar o enigma artístico do amigo de longa data, o cantor e compositor Roberto Menescal atribui ao violonista o espectro da genialidade. “Um gênio da música e como todo gênio tem características especiais de vida. Mas, certamente, foi um cara que mudou a canção dos anos 1960, um pouquinho antes até”, defendeu.
O cearense Fagner, por sua vez, ressaltou a postura inquieta do ícone. O cantor divide um pouco da experiência conquistada ao lado do bossa-novista. Conheci as histórias, tinha muito folclore em torno dele. Aí eu já sabia, estava entendendo, qual era a onda dele. E sempre procuramos as afinidades, ele falava muito da música do Ceará, dos conjuntos vocais, “Quatro ases e um Coringa” e “Trio Nagô”. Ele brincava, tinha umas tiradas. Foi uma pessoa de muito carinho”, resume.
Fausto Nilo esteve no primeiro show que João Gilberto fez em Fortaleza. Foi em 1959, no antigo Cine Samburá, na rua Major Facundo. O público lotou o espaço ainda movido pelo sucesso de “Chega de Saudade” e “Felicidade”, que tinham repercussão nas rádios locais. “Sou testemunha que João Gilberto fez um sucesso radical com essas canções. Repercutiu bem seja pela sensibilidade de alguns ou pelo jeito de cantar do João, que algumas pessoas tomavam como estranho”, conta.
Na primeira apresentação na capital cearense, Fausto chegou cedo e se postou na segunda fileira. Nas mãos, um disco que havia levado na tentativa de conseguir um autógrafo do músico. “Para muitas pessoas da minha geração, o João Gilberto reorientou a sensibilidade estética na experiência artística. Ele foi uma coisa estruturante na nossa música”, define.
Igualmente discreto, Fausto só falou com o expoente da Bossa Nova apenas uma vez. Conta que foi surpreendido quando o parceiro Fagner passou o telefone para ele dizendo que era João Gilberto na linha. “Vou passar o telefone para um amigo meu, João. É o Fausto Nilo”, disse o cantor.
Também foi Fagner que colocou João Gilberto, ao telefone, para ouvir o cearense Nonato Luiz interpretar, ao violão, uma música de Tom Jobim (1927-94). Ao término da apresentação, João teria elogiado a performance do cearense. “O Fagner disse que ele mandou um adjetivo como ‘escândalo’ depois de escutar. Isso foi muito importante”, dimensiona o violonista.
Para Nonato, o trabalho de João Gilberto é sinônimo de música e de violão. “Ele sempre representou muito para o meu trabalho e acrescentou muito a minha música. João trouxe essa brasilidade para música e eu carrego essa influência, apesar dos estilos diferentes”, considera.
Amiga de Miúcha (1937-2018), ex-mulher de João Gilberto, a cantora cearense Lúcia Menezes destaca o perfil discreto do compositor. Apesar da reclusão típica do baiano, ela conta que João chegou a encontrar Miúcha antes de a ex-companheira falecer, em dezembro do ano passado.
“João foi um dos maiores cantores e intérpretes da nossa música. Ele construiu algo único, um grande feito na MPB, ao nos apresentar a Bossa Nova e ensinar os brasileiros a cantarem a Bossa Nova”, afirma Lucinha.
Perspectivas
Dono de um nome por demais brasileiro, João traduziu em notas musicais o espírito de um País esperançoso e carente de mudanças sociais. Os anos 1950 testemunhavam profundas transformações de natureza política, econômica e cultural. Naquele instante, o discurso da industrialização e da crescente urbanização alimentavam a perspectiva de uma nação moderna.
Fenômeno mais nítido no Sudeste, a população ocupava cada vez mais as cidades. Nascido em Juazeiro (BA), migrou como muitos outros nordestinos. Claro, cada estrada percorrida carrega uma expectativa própria e quis a competência e destino que o baiano chegasse em 1957 ao Rio de Janeiro. Guardava na bagagem a ideia de uma cadência musical só sua. Um tipo de batida nas cordas do violão capaz de dialogar com o samba. O gênero descia da realidade dos morros e encontrava acolhida nos apartamentos da rica Zona Sul fluminense.
Naquela altura, Menescal encarava uma festa daquelas. Os pais comemoravam 30 anos de casamento e um convidado insistia em perguntar se tinha um violão na casa. Era o João. Na posse do instrumento apresentou “Bim Bom”. Foi o suficiente para o jovem Menescal presenciar aquela “nova batida” para os amigos, entre os escolhidos estavam Ronaldo Bôscoli (1928-94) e Nara Leão (1942-89).
A pretendida modernização do samba também flertava com o jazz norte-americano nas formas de interpretação e ritmo desacelerado. Menescal resgata aqueles acontecimentos. “Ele procurou, na verdade, sintetizar aquele ritmo todo. Descobriu que o tamborim era algo simples, que definia essa batida”, detalha Menescal acerca do método desenvolvido pelo artista.
João reafirmou a tradição musical brasileira ao ter no samba a grande referência. A mesma mão dos acordes também imprimia a percussão. A voz percorria um caminho contrário ao da impostação. Cantava cercado do silêncio, como se estivesse encarcerado num mundo próprio. De lá só saia quando a última nota ou palavra era executada. Hoje, o verso “Que no peito dos desafinados também bate um coração” permite inúmeros significados. Políticos até.
“Foi um momento muito nosso e não tínhamos essa noção de que estava acontecendo mudanças, grande como foi. Eu me lembro, inclusive, de pensar ‘puxa, que bom que foi esse ano’. Não tinha nem o nome ‘Bossa Nova’, ainda. Lembro de conversar com meu parceiro Ronaldo Bôscoli: “Pô, Ronaldo. Se isso durar mais um ano seria bom demais’. Ele me falou: ‘acho que vai durar muitos anos’. E foi assim, aos poucos, nós mesmos fomos tomando conhecimento dessa mudança e de que fazíamos parte dela. E João Gilberto foi vital para isso. A chegada dele, quando ele definiu aquela batida do violão”, estipula Menescal.
Silencioso
Em julho de 1958, Elizeth Cardoso (1920-90) entregava o marco “Canção do Amor Demais”. O disco com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (1913-80) ganhava a interferência de João Gilberto, presente ao violão nas faixas “Chega de Saudade” e “Outra Vez”. No ano seguinte, era a vez do baiano debutar com um 78 rotações. Intenso e preciso careceu de meros 23 minutos para construir o recado. O trabalho de estreia é considerado uma das mais importantes gravações da Bossa Nova. Creditado por inúmeros apreciadores como o registro basilar de um grande gênero musical popular.
Ao declarar “Chega de Saudade”, João alertava aos ouvintes da necessidade de conexão com o presente. O rompimento com o passado se materializava na ideia de propor novas perspectivas, de insurgir misturas e desnudar uma nação marcada pelas desigualdades sociais da população. Diante daquele Brasil, uma voz tímida, quase sussurrada, ousou decifrar o espírito do tempo.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira deixa o silêncio como ferramenta de percepção da realidade. É exemplo para os que preferem mais falar do que ouvir. Na canção “Pra ninguém” (1997), Caetano Veloso foi de uma precisão invejável. “Melhor do que isso só mesmo o silêncio. E melhor do que o silêncio só João”, debulhou Caê.
“Ele continua contribuindo no silêncio dele. O legado dele foi tão importante e nada de estrondoso como um Frank Sinatra. É algo que você vai reencontrando e pensando: ‘peraí, como o João faria isso, como ele tocaria esses acordes. Ele partiu, é natural, todo nós vamos. Até hoje tem muita gente jovem preocupada em rever aquilo, se ele estava fazendo a coisa direito. Isso fica para sempre. Ele partiu e a música ficou”, conclui Menescal.
*Colaboração do repórter Felipe Gurgel – Diário do Nordeste.
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