Sabemos que estamos diante de um fenômeno realmente grande quando seus efeitos são amplos e mexem com a vida de muita gente. Em economia, esses eventos são as crises financeiras, planos econômicos, acordos comerciais e inovações que levam a consequências difíceis de estimar em um primeiro momento. O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia é um desses fenômenos. Provavelmente o mais importante para o Brasil nesta década.
Nos anos 90, tivemos a primeira abertura comercial, as privatizações e o Plano Real (este, sem dúvida, o fato mais importante). Nos anos 2000. tivemos o Bolsa Família (como marco de um avanço social que começou nos anos 90) e a crise de 2008/2009 (o mais importante, mesmo para o Brasil, porque fortaleceu a tese econômica que levou à recessão desta década).
O acordo comercial vai competir só com outros dois fatos: a grande recessão de 2014-2016 e com a reforma da Previdência (que tem chances muito boas de não virar a década na fila do Congresso). Ainda teremos de esperar para ver qual dos três fatos será o mais marcantes, mas minha aposta é que o acordo comercial terá os efeitos diretos mais importantes – embora a reforma da Previdência seja essencial para o país voltar a crescer e seja um bom concorrente pelo título. Vamos às razões:
1. Acesso a mercados
O Mercosul passa a ter acesso a um mercado com uma população que já ultrapassa 500 milhões de pessoas, o dobro do que têm Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai juntos. É o maior acordo já assinado pelo Mercosul e, na verdade, o único que tem potencial para ser transformador. O acordo vai zerar tarifas para 92% das exportações industriais do bloco sul-americano e dará acesso a produtos importantes na pauta do agronegócio brasileiro, como café solúvel, suco de laranja e frutas. Dados da Confederação Nacional da Indústria mostram que, de uma pauta de 1,1 mil produtos industriais com potencial de exportação para a UE, quase 70% sofrem com tarifas e cotas atualmente.
2. Acesso a produtos
O acordo também beneficia os consumidores brasileiros, que terão à sua disposição produtos europeus com a tarifa zerada ao longo da implementação do acordo. Carros, máquinas e equipamentos, medicamentos e produtos químicos são aqueles em que a UE têm mais condições de vender aqui com preços muito competitivos. Também há a pauta do agronegócio, com chocolates, vinhos e queijos. Para quem faz compras, ter mais opções é sempre melhor.
3. Integração a cadeias globais
O Brasil está entre os países emergentes mais fechados do mundo. A alíquota média de importação praticada aqui foi de 8,3% em 2015, a mais alta entre pares, segundo dados do Banco Mundial. Também criamos barreiras não-tarifárias como poucas nações e impomos uma burocracia grande para quem importa. Isso faz com que o país fique isolado das cadeias globais de valor – processos de produção em que o fornecimento é espalhado pelo globo. São poucas os setores brasileiros com algum grau mais profundo de integração, como a indústria automotiva.
Para se ter uma ideia dos obstáculos impostos pelo país, 89% das importações no Brasil estão sujeitas a medidas não-tarifárias, 66% a medidas sanitárias e 65% a controles de qualidade e quantidade. Acordos internacionais reduzem esse tipo de atrito porque estabelecem padrões que precisam ser respeitados pelas duas partes. Um teste de qualidade europeu com o tempo passará a ser automaticamente aceito no Mercosul, e vice-versa.
4. Ganhos de produtividade
Cálculos do Banco Mundial sobre a economia brasileira mostram que a maior competitividade desencadeada pela abertura comercial fará crescer a produtividade. Uma redução de 10% na margem média preço-custo no setor manufatureiro (que é esperada com a abertura ideal simulada pelo estudo) leva a um crescimento na produtividade do trabalho de 3% ao ano, o que corresponde a um acréscimo de 1,4 milhão de empregos por ano. Não há uma estimativa sobre o acordo com a UE, que terá um efeito menor do que nessa projeção. Mas ela serve como argumento: mais competição faz com que os produtores nacionais aumentem a produtividade, tanto para lidar com a entrada de empresas estrangeiras, quanto para concorrer no exterior. É ótima notícia para um país cuja produtividade total dos fatores está estagnada desde os anos 90.
5. Inovação e educação
Este ponto é continuação do anterior. A competição faz com que empresas busquem novas soluções e produtos, ou seja, inovem mais. Ambientes mais inovadores aumentam a demanda por pessoas educadas, dando um “prêmio” maior a quem está pronto para esse novo momento do mercado de trabalho. Aqui, um sinal de alerta importante: o Estado brasileiro precisa estar pronto para dar suporte à educação da população, em especial no ensino básico. Lembrando que a abertura comercial dos anos 90 foi seguida pela universalização do ensino fundamental. Um salto maior do que esse será necessário com o acordo com a UE.
6. Mudança no uso de fatores
Somando todos os cinco pontos anteriores, temos o que é a grande mudança provocada por acordos comerciais amplos como o fechado na semana passada: a que ocorre no uso de fatores. Empresas pouco competitivas vão sofrer. Muitas podem até fechar. As pessoas terão de aprender a trabalhar nos setores que ganham com as exportações maiores.
Um estudo do ano passado da Secretaria de Assuntos Estratégicos mostra que uma modernização comercial (mais ampla que um acordo com um bloco) teria impactos imensos. Em vários setores é esperada uma queda entre 6% e 16% nos preços praticados – entre eles automóveis, maquinário, couro, têxteis e vestuário – o que tornaria muito difícil a sobrevivência de várias firmas. Como consequência, há uma queda inicial no número de empregos em diversos setores e um redirecionamento dos trabalhadores para áreas mais competitivas – em 20 anos, só três setores industriais teriam uma queda acima de 0,5% no nível de emprego. Outras consequências da abertura são um aumento consistente nas exportações (já que o custo de produção interno cai) e uma redistribuição regional dos fatores de produção.
É claro que os efeitos de um acordo como o fechado como a UE são menores do que os de uma abertura comercial geral, mas é preciso olhar com cuidado para os efeitos setoriais. Programas pontuais de apoio para indústrias em busca de maior competitividade e treinamento da mão de obra que está mudando de área serão necessários.
7. Crescimento econômico
E haverá, com tudo isso, mais crescimento econômico. O Ministério da Economia divulgou que espera um aumento de US$ 100 bilhões por ano nas exportações para a UE em um prazo de 15 anos, de US$ 115 bilhões nos investimentos e de US$ 125 bilhões no PIB no mesmo prazo. Não é só o que importa. Aumentos de produtividade e a conexão com cadeias globais de valor também contam para o crescimento econômico, assim como a maior inovação. Somando todos os fatores, podemos esperar um acréscimo no potencial de crescimento.
8. Fortalecimento do liberalismo
Existe também um argumento político para o acordo ser o fato econômico mais importante desta década: ele consolida uma visão liberal sobre a economia no Brasil após duas décadas de fechamento em que quase nada se fez em liberação comercial. Isso tem a ver com as equipes econômicas dos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que insistiram nessa visão, superando nos últimos meses a resistência de setores afetados pelo acordo. Vale salientar a decisão do governo Bolsonaro de colocar debaixo do Ministério da Economia a área de comércio exterior, o que acelerou o processo.
Conforme o acordo for aprovado e implementado, a economia fará seu trabalho e a população vai sentir seus efeitos positivos e negativos. Como defendido pela vasta maioria dos economistas sérios, os ganhos serão maiores e veremos uma colaboração do comércio internacional para o bem-estar da população. Pode não ser um efeito como o do Plano Real ou do Bolsa Família, isoladamente. Com o tempo, porém, será complementado por outros acordos que serão facilitados após este primeiro passo. É o tipo de ganho difícil de ser jogado fora depois, mesmo por quem defende o fechamento da economia como caminho (improvável) para o desenvolvimento.
9. Vinho barato
Claro, teremos vinho mais barato. Não sou nenhum conhecedor da bebida, mas sei que pagamos R$ 30 por uma garrafa de 1 euro. Serve como exemplo de tudo que vai acontecer. Teremos produtos melhores e mais baratos. Nossos produtores precisarão se adaptar com agilidade. O governo precisará dar suporte para as regiões afetadas. E um dos esforços políticos mais fortes contra a abertura comercial (a bancada gaúcha é defensora do setor) terá sido vencido nessa causa e tentará outros caminhos para proteger o setor. Ninguém disse que ia ser fácil.
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