O julgamento de dois pedidos de habeas corpus impetrados pela defesa do ex-presidente Lula na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal mostrou, mais uma vez, que há ministros sempre dispostos a tirar da cartola soluções heterodoxas que seriam desnecessárias se eles simplesmente se dispusessem a cumprir adequadamente suas funções. Lula continuará preso, mas por muito pouco não conseguiu a liberdade graças a uma manobra de Gilmar Mendes. O ministro sugeriu que, em vez de terminar o julgamento já iniciado a respeito da suspeição do então juiz federal Sergio Moro, a Turma votasse uma liminar para soltar o ex-presidente enquanto o julgamento não fosse concluído.
Gilmar Mendes havia pedido vistas em dezembro de 2018, quando o julgamento do habeas corpus já tinha dois votos contra o petista – do relator, Edson Fachin, e de Cármen Lúcia. Em 10 de junho, ele devolveu o processo, permitindo que o tema entrasse na pauta da Segunda Turma, o que ocorreu nesta terça-feira. Concluído o julgamento de outro HC, que buscava anular uma decisão monocrática do ministro Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no qual Lula foi derrotado por quatro votos a um, chegara a hora de terminar a votação do HC relativo à suspeição de Moro. Este HC ainda dependia dos votos de Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Mas, nesse momento, Mendes insistiu em votar não o mérito do HC, mas a liminar que ele mesmo tinha tirado da cartola, antes mesmo que a defesa de Lula pensasse em algo parecido.
Não há garantismo penal nem base regimental que expliquem a postura de Gilmar Mendes
Em outras palavras, Mendes deu a impressão de que trabalhava mais como advogado de defesa de Lula que como julgador. Os colegas da Segunda Turma foram à sessão esperando votar o habeas corpus, mas acabaram tendo de julgar uma liminar proposta no calor do momento. Além disso, logo no início da sessão, tinha sido de Mendes a iniciativa de sugerir a libertação de Lula caso não fosse possível concluir os julgamentos do dia, estratégia logo assumida pela defesa do ex-presidente.
O que Mendes, crítico ferrenho de Moro e da Operação Lava Jato, sugeriu era bastante conveniente para a defesa. Afinal, na melhor das hipóteses, a liminar seria deferida e Lula estaria pronto para sair da cadeia; se a liminar não prosperasse, como de fato não prosperou, o HC continuaria vivo para ser julgado mais adiante, talvez sob o impacto de novas supostas conversas atribuídas a Sergio Moro e divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Que algo assim fosse sugerido pela defesa seria de se esperar, mas não da parte de um dos julgadores. Chega a ser incompreensível; não há garantismo penal nem base regimental que expliquem essa postura.
Embora indecente em termos objetivos, a manobra não seria exatamente inédita. Lembrou em muito o salvo-conduto dado pelo STF ao próprio Lula em março de 2018, quando o plenário simplesmente desistiu de continuar julgando um habeas corpus, no célebre episódio em que Marco Aurélio Mello chegou a mostrar um cartão de embarque para comprovar que precisava se ausentar, e em vez disso concedeu uma liminar pedida verbalmente pela defesa de Lula. Na ocasião, escrevemos que “formalmente, o habeas corpus ainda não foi julgado, mas, na prática, o que o Supremo fez foi justamente aplicar seus efeitos (…) Entendamos bem a gravidade do que acabou de ocorrer: a jurisprudência foi atropelada, concedendo-se um salvo conduto para Lula, apenas porque os ministros não quiseram dar prosseguimento ao julgamento”. Desta vez, o procedimento foi semelhante, mas felizmente o resultado foi diferente. Apesar da insistência de Lewandowski para que os ministros voltassem a analisar o mérito do habeas corpus, a sessão foi encerrada pela presidente da turma, Cármen Lúcia.
Apesar do desfecho da sessão desta terça-feira, não podemos ignorar que o Supremo esteve muito perto de manchar sua história como poucas vezes se viu na vida deste país. Uma decisão equivocada da corte motivada por determinadas visões jurídicas ou mesmo ideológicas é grave e perigosa, mas ainda passível de debate e argumentação. No entanto, se Lula tivesse conseguido a liberdade, estaríamos diante da validação do truque regimental, do abandono da missão de julgar, da promoção objetiva da injustiça ou do privilégio por meio de atalhos, independentemente de haver alguma intencionalidade neste sentido. E isso não há como defender.
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