O peso-real não passa de delírio

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante transmissão ao vivo nesta quinta-feira (6/5) — Foto: Marcos Corrêa/PR

O ministro Paulo Guedes fala na moeda única do Mercosul há mais de dez anos. Mas será que o Brasil estaria disposto a pagar pela esbórnia fiscal e monetária dos argentinos?

Foi logo depois da crise de 2008, na revista Época, que o hoje ministro da Economia Paulo Guedes defendeu pela primeira vez a criação de uma moeda forte no Mercosul, que ele próprio batizou de “peso-real”. Sua ideia era criar um polo monetário latino-americano para disputar o que, na ocasião, os economistas viam como inevitável: a decadência do dólar diante da crise.

Quem se lembra sabe que as empresas americanas estavam tão baratas que, se quisessem, os grandes bancos brasileiros poderiam ter comprado os maiores americanos. O Brasil parecia ter sido poupado do tsunami. Não era absurdo imaginar um mundo em que o tal peso-real disputasse espaço com o euro ou o yuan chinês.

Pois crise passou e, como costuma acontecer com mais frequência do que gostam de admitir, os economistas estavam errados. Diante do colapso no preço dos ativos imobiliários, do naufrágio nas bolsas de valores e da bancarrota em massa de empresas financeiras, houve fuga em massa de capitais para o único ativo considerado seguro: papeis do Tesouro americano. Resultado? O dólar se valorizou diante das demais moedas e continua a reinar soberano.

Até hoje, o Fundo Monetário Internacional (FMI) pena para consolidar sua cesta de moedas conversíveis como substituto global para avaliar os ativos financeiros. O último desafio foi a incorporação do yuan. O real nem sequer é visto como unidade monetária plenamente conversível no mercado. Você pode abrir facilmente contas em euros ou dólar no mundo todo. Pois tente fazer o mesmo com reais…

Não por acaso, a ideia da moeda única do Mercosul entrou em hibernação. Até o início deste ano. Depois de afirmar antes da posse que o bloco não estava entre suas prioridades, Guedes mencionou o assunto a seu par argentino, o ministro Nicolás Dujovne. Dujovne ficou animado. Em 26 de abril, esteve no Brasil para tentar fazer pressão por um anúncio comum de que as negociações sobre o assunto avançavam.

O motivo é apenas político. A economia argentina encolhe faz dois anos. A inflação bateu em 55% nos últimos 12 meses. O plano de reformas liberais do presidente Maurício Macri se revelou um fracasso para reequilibrar as contas públicas. A Argentina ainda sofre com as contas externas, como resultado do calote aplicado aos credores internacionais no início do século. Tudo isso num ano em que Macri disputa a reeleição diante de um rival visto como favorito: o kirchnerismo, na chapa encabeçada por Alberto Fernández, que tem Cristina Kirchner como vice.

No momento em que veio ao Brasil fazer pressão, a Argentina enfrentava sérias dificuldades cambiais. O dólar tinha disparado por lá, pois o FMI hesitava para aprovar uma nova rodada de socorro financeiro. Ao fim, o dinheiro foi liberado, e o assunto, novamente esquecido. Até ser ressuscitado ontem pelo jornal argentino La Nación, sob o pretexto da visita do presidente Jair Bolsonaro a Buenos Aires.

A moeda única, corolário original do projeto de integração do Mercosul, é tema de “conversas, diálogo e muita sintonia”, dizem Dujovne e outros ministros argentinos citados pelo La Nación. No Brasil, à exceção da vontade de Guedes, não existe rigorosamente nenhuma iniciativa do governo para tentar unificar as moedas dos dois países. Nem se imagina que possa haver tão cedo.

A integração monetária é um processo complicadíssimo, que envolve um longo período de convergência na política monetária e em indicadores fiscais. Na Europa, uma unidade monetária comum virtual existiu formalmente por vinte anos até ser substituída pelo euro, em janeiro de 1999. Antes dela, já havia uma unidade para transações bancárias, vigente desde 1975.

Nem com todos esses cuidados, os criadores do euro puderam impedir que a moeda única entrasse em xeque, em virtude do descontrole financeiro na Grécia, Portugal, Itália, Irlanda e Espanha. As imposições do Tratado de Maastricht já haviam sido desrespeitadas até na Alemanha. Até hoje, o Banco Central Europeu é visto com suspeição no país, cuja economia acaba pagando a conta do euro.

Num cenário de moeda comum no Mercosul, não há muita dúvida: o Brasil é que desempenharia o papel da Alemanha. O real seria o lado forte do peso-real. Será que estaríamos dispostos a arcar com a responsabilidade de pagar pelo descontrole fiscal, monetário e nas contas externas argentinas? A resposta parece óbvia.

Outra incógnita: se a criação do euro levou uns 30 anos em economias de comportamento mais próximo, qual seria o prazo de equilíbrio para a unificação monetária do Mercosul? Cinquenta anos? Setenta? Cem? Não há nada, rigorosamente nada de realista na sugestão neste momento, exceto como tentativa de alavancar a combalida candidatura Macri.

O mais curioso é que tal projeto surja logo no governo Bolsonaro, que se diz nacionalista e tenta se aproximar daqueles países europeus cujos governos torpedeiam o projeto de integração regional e veem no euro uma imposição da “elite globalista”. Depois de seis meses, já deu para perceber que coerência e consistência intelectual não são exatamente os pontos fortes da turma que assumiu o poder no Brasil.

Confira matéria do site G1.

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