Em um frigorífico de Smithfield, na região central de Illinois (EUA), inspetores federais examinam carcaças de suínos na linha de abate, removem carnes eventualmente contaminadas ou em desconformidade e as marcam como “condenadas”. Eles têm a responsabilidade exclusiva de realizar este trabalho. Em outro frigorífico, a 75 quilômetros dali, os próprios funcionários da empresa brasileira JBS, que fazem parte de um programa piloto de longa duração, realizam tarefas semelhantes àquelas dos inspetores federais.
Quando os funcionários fazem esse trabalho de segurança alimentar, o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) diz que eles estão “classificando”, “removendo” ou “descartando” a carne, sem “inspecioná-la” propriamente ou “condená-la”. A mudança de linguagem é importante nos esforços do USDA para fazer as mudanças mais drásticas na política federal de inspeção de carnes desde que o Congresso aprovou uma lei histórica, de 1906, que tomou o controle da segurança alimentar dos proprietários das usinas e passou aos inspetores federais das províncias.
O novo sistema de inspeção proposto pelo governo americano transfere algumas responsabilidades que tradicionalmente são dos inspetores do USDA para funcionários de plantas industriais de suínos. O USDA diz que estudou o novo sistema de inspeção por 20 anos e que os produtos das plantas de teste são tão seguros quanto aqueles produzidos pela inspeção tradicional. Eles dizem que os inspetores federais vão gastar menos tempo avaliando visualmente a carne suína e mais tempo assegurando que as condições sanitárias sejam mantidas em toda a fábrica. Vários advogados de segurança alimentar, membros democratas do Congresso e uma ex-autoridade agrícola dizem que o USDA está fazendo uma manobra para contornar a lei em vigor há mais de um século.
Essa “manobra” exige que os reguladores federais inspecionem – e passem ou condenem – todo suíno vivo que chega a um matadouro e cada carcaça que passa pela linha de abate. “Eles estão jogando esses jogos de linguística”, disse Rena Steinzor, especialista em segurança alimentar que ensina Direito na Universidade de Maryland. “O que eles estão fazendo é ilegal. Se eles têm um problema com o estatuto porque acham que é um desperdício de energia para os inspetores federais verem cada animal, eles podem iapelar ao Congresso. A Constituição exige que façam isso, não pode fazer por regulamentação.”
No Brasil, o Ministério da Agricultura estuda proposta semelhante a ser implantada nos frigoríficos do país. Um comitê chamado de Comitê Técnico de Programas de Autocontrole, instituído pelo Mapa, já definiu quatro áreas que inicialmente deverão adotar o sistema: alimentação animal (ração), fertilizantes, suínos e bebidas. Nesse sistema, o fabricante fica responsável pela qualidade do produto e o Estado fiscaliza.
“O ministério precisa disso para ter agilidade, atender bem aos nossos empresários, diminuir o custo Brasil. Temos problemas de infraestrutura, de portos e de ferrovias, e temos problemas de (falta de) gente. Se todos fizerem sua parte e dermos garantias ao consumidor final de que estamos entregando um produto seguro e que cada um está fazendo sua parte, cada vez mais, o ministério precisará ter menos pessoas e usar mais tecnologia, mais informatização. Isso é para podermos ter menos gente, e para as pessoas serem usadas no que realmente têm de fazer, que é auditar. Em vez de ficar na linha de produção, (o fiscal) tem de fazer a fiscalização dos produtos que estão entrando e a auditoria dos produtos que estão saindo dos processos produtivos”, disse recentemente a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
Cada uma das quatro áreas será trabalhada por um subcomitê específico, formado por integrantes do Mapa. Os subcomitês devem ser instalados até 15 de junho e até 60 dias depois devem ocorrer reuniões de avaliação com o Comitê Técnico para verificar os avanços de cada uma das áreas. A escolha dessas quatro áreas, segundo o ministério, foi feita a partir da “maturidade e disposição” desses setores em avançar em direção ao autocontrole. Atualmente, a fiscalização do ministério acompanha o fluxo produtivo até o final e, com o autocontrole, esta tarefa será compartilhada com o setor privado. Os avanços nos modelos de autocontrole seguem a tendência crescente do uso de sistemas voluntários de certificação de qualidade e muitos países da União Europeia também já criaram normatizações sobre isso.
A ministra garantiu, no entanto, que as mudanças serão implantadas “sem pressa e com muito cuidado. O ministério só vai implantar alguma coisa quando tiver certeza, confiança, de que temos todas as condições de dar suporte aos nossos fiscais para cumprir todas as etapas pelas quais o Mapa será responsável. E a iniciativa privada também, as mais diversas cadeias têm de estar preparadas para cumprir o que o autocontrole determina a cada um. Senão, não vai funcionar. Temos de ter muita responsabilidade, porque estamos mexendo com a segurança alimentar dos consumidores de nosso país e dos mais de 160 países que importam produtos do Brasil.”
Críticas
As críticas ao autocontrole, especialmente nos frigoríficos, feitas por entidades como a Associação do Comércio Exterior do Brasil (AEB) e o Procon-SP vieram justamente pelo risco de o país comprometer contratos já firmados de exportação, já que os países importadores mantém regras rígidas sobre os certificados fitossanitários com o Brasil. Passar algumas atividades de fiscalização, hoje nas mãos do governo federal, poderia acarretar na suspensão de importações, prejudicando setores importantes do agronegócio brasileiro, segundo os críticos. O próprio ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi fez menção ao risco para as exportações, além de que algumas medidas para alterar a forma de fiscalização exigiria, como nos EUA, teriam que passar pelo Congresso.
Nos EUA, espera-se que o programa-piloto de inspeção de frigoríficos de suínos se expanda neste verão, depois que o USDA aprovar novas regras. Determinadas plantas frigoríficas teriam a opção de usar o novo sistema de inspeção. Trinta e cinco usinas planejam se juntar às cinco usinas de teste usando o novo programa – juntas, elas produziriam 90% da carne suína consumida nos Estados Unidos. O número de inspetores federais nas linhas de abate de suínos nas plantas novas do programa será reduzido de 365 para 218, um corte de 40%, de acordo com uma análise do USDA. O número total de inspetores nessas plantas fabris cairá de 400 para 288, um declínio de 28%, segundo dados fornecidos pelo Departamento de Agricultura.
As novas regras permitirão que a velocidade de abate seja executada tão rápido quanto o frigorífico desejar. O limite hoje de velocidade da linha de produção é de 1.106 suínos por hora, ou 18 por minuto.Os registros mostram que não houve sérios problemas de saúde pública ou surtos de contaminação de carne ligados às plantas de teste. Críticos, no entanto, dizem que essas plantas teste têm mais problemas de segurança alimentar do que as plantas tradicionais. O USDA contesta isso. Uma meia dúzia de grupos de segurança alimentar, junto com o sindicato de inspetores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, disseram estar preocupados com o fato de que o aumento na velocidade das linhas e reduções nas equipes federais causará o consumo de carne inadequada. Eles também citam um conflito de interesse inerente entre os funcionários da fábrica, já que eles trabalham para produtores de carne suína e não para a população.
O treinamento desses trabalhadores, dizem, também é feito inteiramente a critério dos proprietários das usinas. Autoridades do USDA afirma que estão modernizando o processo de inspeção e que o novo sistema não violará as leis e regulamentações existentes. Segundo eles, o departamento tem autoridade para mudar a forma como as inspeções federais são realizadas, desde que seja feita uma inspeção de carcaça em todos os suínos apresentados pelo frigorífico como aptos para o consumo humano. “Nas regras propostas, estamos apenas dando aos funcionários da fábrica a oportunidade de executar mais completamente seu plano (de segurança alimentar) antes de fazermos a verificação final de que o produto é seguro”, afirmou Phil Bronstein, administrador assistente do Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar (FSIS), ligado ao USDA.
Nomenclaturas
Para tentar diferenciar os “tipos” de inspetores dentro das plantas frigoríficas de teste, os fiscais do USDA usam o termo inspetor e se referem às suas contrapartes que são funcionárias da empresa com inspetor TS (algo como apoio e triagem). Por exemplo, em uma citação de 2013 para uma violação de segurança alimentar, um inspetor da USDA disse que um suíno doente havia “passado a todos os três inspetores da “TS” sem que eles vissem o problema e a carcaça tivesse que ser condenada.
Nos anúncios de emprego, os proprietários dos frigoríficos chamam alguns inspetores de funcionários ou usam a palavra “inspetor” nas descrições de trabalho. Em um recente estudo publicado pela JBS, o termo “inspetor de controle de qualidade” foi usado no título, dizendo que as tarefas do profissional incluem a realização de “várias funções de controle de qualidade, incluindo, mas não limitadas a inspeção de linha, auditorias”. A JBS não respondeu a vários pedidos de entrevista do The Washington Post.
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