Para especialista, o afastamento das famílias coloca detentos à mercê do crime organizado. Audiência pública discutiu relatório sobre torturas dentro de presídios
Água salgada, marmitas cruas, instalações com ratos, proibições de banho e reiterados espancamentos durante “procedimentos internos”. A realidade das celas do sistema penitenciário cearense, de acordo com familiares de detentos presos, é atestada pelo Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), lançado ontem em audiência pública na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Secção Ceará. Contudo, os problemas esbarram em incertezas. Uma mulher alegou nem saber se o marido está vivo, já que não consegue visitá-lo há três meses.
Na leitura do perito do Mecanismo, José de Ribamar de Araújo, em nome do poder coercitivo, o Estado do Ceará se tornou violador de direitos. Nesse sentido, cita a ausência do cumprimento de assistências básicas, como o fornecimento de alimentação de qualidade e medicamentos. Grande parte desses insumos era levada por familiares, mas as transferências “não planejadas” quebraram vínculos familiares e colocaram os detentos em maior dependência de grupos criminosos.
“Achar que essa reconcen-tração de presos combate as facções é um ledo engano. Esse método, de certa forma, favorece o trabalho das facções porque deixa mais e mais presos dependentes de uma assistência que o Estado não dá, e aquelas que eram supridas pelas famílias não vêm porque elas estão no interior, não em Fortaleza”, avalia Ribamar.
Em depoimento emocionado, Nádia Maria relatou ter descoberto recentemente que o filho de 19 anos contraiu tuberculose e, dentro do sistema, só piora. Fora, se sente impotente. “Não aguento mais sofrer”, confessa. Outras mulheres relatam agressões com spray de pimenta ou cassetetes. Em março, o Diário do Nordeste mostrou laudos médicos atestando que 32 presos da CPPL III sofreram lesões na cabeça, mãos e pernas.
Entraves no acesso dos advogados aos clientes também são criticados pelo presidente da OAB-CE, Erinaldo Dantas. Segundo ele, a entidade se propôs a custear a reforma de parlatórios, além de realizar mutirão com outros órgãos para analisar a situação de presos provisórios e a possível utilização de tornozeleiras, a fim de reduzir a superlotação nas unidades.
O titular da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), Mauro Albuquerque, não compareceu à audiência. A representante do Governo do Estado, Lia Gomes, secretária executiva de Proteção Social, Justiça, Mulheres e Direitos Humanos, declarou que a nova gestão assumiu diante de uma realidade “muito difícil” e teve “que tomar algumas medidas, mas de cunho transitório”. Ela se colocou à disposição para avaliar qualquer denúncia de tortura.
Em nota, a SAP afirma que “práticas de tortura ou de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes não integram a pauta de mudanças no sistema prisional cearense”. Reforça que a reestruturação promovida pelo Estado ocasionou o amotinamento e agressões físicas de presos contra servidores públicos, que agiram “com o rigor da Lei para restabelecer a ordem”.
Diz ainda que realizou 193 mil atendimentos que vão da atualização de vacinas até o cuidado psiquiátrico, e que todos os nossos presos recebem kits higiênicos individuais.
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