O mito do suicídio dos idosos no Chile

Foto: Pixabay

O nível de maldade da reforma da Previdência seria tal que faria os aposentados quererem se matar. A mudança para um regime em que cada um recebe o que contribuiu tornaria o Brasil igual ao Chile, onde os velhinhos se suicidam por conta da previdência. De Guilherme Boulos a José Guimarães, passando por Alessandro Molon, a narrativa do Chile como campeão de suicídio de idosos prosperou. Só que não é verdade.

Idosos têm maior prevalência de suicídios no mundo todo

No Chile, a taxa de suicídios é maior entre idosos do que entre jovens. No Chile, no Chade e na China.

Como explica o pesquisador Ajit Shah, da Universidade Middlesex, em Londres, “os suicídios geralmente aumentam com a idade”. E “em países em desenvolvimento e desenvolvidos a proporção de idosos na população está aumentando”.

Shah comparou as taxas de suicídios de idosos para dezenas de países, por 5 anos diferentes, e para duas faixas etárias de idosos. O estudo foi publicado no Journal of Injury and Violence Research.

Para nenhuma das faixas e nenhum dos sexos o Chile é o país com maior taxa de suicídios de idosos. Nem é o com a maior taxa da América do Sul.

Do Chile para a Comissão de Constituição e Justiça

Em sua tumultuada participação na CCJ da Câmara, o ministro Paulo Guedes foi confrontado por essa história. O deputado José Guimarães declarou: “o Chile é hoje um país com uma legião de idosos pobres, é o país onde mais se comete suicídio.”

Guilherme Boulos já tinha feito a afirmação no Twitter, quando criticou a reforma: “A ideia geral não é nada mais que entregar a Previdência aos bancos. O Chile fez isso na ditadura de Pinochet e ostenta hoje o título de país com mais suicídios de idosos acima de 80 anos.”

Na CCJ, Guimarães foi complementado por Alessandro Molon: “como é possível fazer isso, ministro? Esse sistema que Vossa Excelência quer que o Brasil adote está levando os idosos do Chile ao suicídio”.

A esquerda brasileira finalmente se uniu: na tese do suicídio dos velhinhos no Chile.

O que realmente dizem os dados

O trabalho de Shah, que teve como fonte as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), identificou taxas mais baixas de suicídio de idosos no Caribe e em países árabes e muçulmanos. Os países com as maiores taxas seriam os da Europa Central e Leste Europeu; países da antiga União Soviética; e alguns países asiáticos e da Europa Ocidental.

Nada do Chile, ao contrário da “pesquisa” de Boulos ou Guimarães.

Shah compara 97 países, em 5 anos diferentes. Ele divide o grupo de países em quartis (4 grupos de acordo com a taxa de suicídio).

Para os idosos homens, entre 65 e 74 anos, o Chile está no segundo quartil com a maior taxa. Entre os sul-americanos, fica acompanhado da Argentina. Mas está, entre o resto da América Latina, atrás de Cuba e Costa Rica, que ficaram no primeiro quartil. O mesmo ocorre com os idosos homens com 75 anos ou mais.

A situação fica ainda mais distante da fake news no caso das mulheres. Para as idosas entre 65 e 74 anos, o Chile está apenas no terceiro quartil com maior suicídio (ou, alternativamente, no segundo quartil com menor taxa). Argentina tem colocação pior, e, no restante da América Latina, Costa Rica e Cuba. A situação se repete para idosas com 75 anos ou mais.

Olhemos agora especificamente para 2012, conforme dados citados pelo próprio ministro Paulo Guedes e de checagem da Agência Lupa. A fonte ainda é a OMS. Nessa análise há apenas uma faixa etária de idosos, os com mais de 70 anos. No Chile, a taxa geral para ambos os sexos é de 16,8. A da Argentina é de 21,6. A de Cuba é quase o dobro da chilena: 36,1.

Qualquer um realmente preocupado com o suicídio de idosos na América Latina deveria estar falando de Cuba, não do Chile.

Capitalização da reforma tem pouco a ver com Chile

Com uma dose de boa fé, podemos pensar que há somente um exagero retórico e uma legítima preocupação com eventual pobreza dos idosos em um modelo de capitalização.

O Chile domina essas discussões pelo seu pioneirismo e pelo seu modelo puro. Mas eventual capitalização no Brasil não tem como se parecer com o exemplo do Chile.

Como já falamos na coluna, a proposta de Bolsonaro/Guedes garante um piso de um salário mínimo mesmo para quem poupar pouco. A taxa de reposição das menores aposentadorias ficaria então perto de 100%, bem distante dos 30% do caso chileno.

Há ainda a possibilidade de uma capitalização apenas fictícia, o que se aproximaria mais com o modelo da Suécia do que do Chile.

Além do mais, o nosso monumental déficit na Previdência impede uma transição total para o regime de capitalização. Não há espaço para retirar todas contribuições que pagam o atual sistema e colocá-las no mercado financeiro.

Não à toa, Bolsonaro, Rodrigo Maia e o próprio Paulo Guedes já admitem que a capitalização pode ser retirada da proposta. Vamos torcer para que a lacração com o autoextermínio de idosos também.

Confira matéria do Site Gazeta do Povo.

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