Se o STF simplesmente incluir a homofobia na Lei do Racismo, estará criando uma ameaça tão insólita quanto grave à liberdade de expressão no Brasil
Em 2013, o naturalista e documentarista britânico David Attenborough afirmou que os seres humanos eram uma “praga” assolando o planeta Terra e que, por isso, deveria haver limites à população. Quatro anos depois, o filósofo sul-africano David Benatar publicou um livro defendendo que as pessoas parassem de procriar – trata-se do “antinatalismo”, que critica o ato de ter filhos por vários motivos: seja porque a vida é cheia de sofrimento e não vale a pena ser vivida, como argumenta Benatar, ou porque as pessoas estão consumindo desenfreadamente os recursos do planeta, como diz Attenborough. Ainda que consideremos totalmente equivocada a crítica dos antinatalistas às pessoas que insistem em ter filhos, passaria pela cabeça de alguém simplesmente proibir, por força de lei, que elas manifestassem seu desagrado diante da visão de um casal com seu bebê? Ora, isso seria não apenas uma insensatez; seria uma verdadeira violência, um atentado a uma liberdade básica, a de expressão.
Pois é justamente algo equivalente a isso o que pode ocorrer no Brasil caso o julgamento sobre a criminalização da homofobia – tecnicamente, o Mandado de Injunção 4.733, relatado por Edson Fachin, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, relatada por Celso de Mello – termine consagrando o entendimento adotado até agora por todos os quatro ministros do STF que já se manifestaram. Fachin, Mello, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram por equiparar a homofobia ao racismo, aplicando a Lei 7.716/89 aos casos de discriminação contra homossexuais ou transexuais, pelo menos enquanto o Congresso Nacional não aprovar lei específica.
Há quem negue direitos, quem agrida, quem mate pelo simples fato de a vítima ser homossexual ou transexual. São crimes que precisam ser combatidos
O alcance exato dessa equiparação ainda é nebuloso, mas há razões para temer que o Supremo acabe indo além do verdadeiro e necessário combate à homofobia – pois é evidente que há quem negue direitos, quem agrida, quem mate pelo simples fato de a vítima ser homossexual ou transexual; são crimes que precisam, sim, ser combatidos. Se a interpretação final for favorável à simples aplicação de todos os artigos da Lei 7.716, transpondo-os para o caso dos homossexuais, estaremos diante de uma agressão histórica à liberdade fundamental de expressão. Uma leitura ampla do artigo 20 desta lei poderia, por exemplo, classificar como “discurso de ódio” – crime, portanto – quaisquer declarações críticas ao comportamento homossexual, argumentos contrários à equiparação das uniões homoafetivas com o casamento tradicional, ou até mesmo doutrinas religiosas que consideram a prática homossexual como equivocada.
Quando se vai além da criminalização do preconceito para estabelecer uma categoria de “crimes de opinião”, ignora-se completamente o fato de que, em todas as democracias sérias, não há comportamento humano que esteja imune ou blindado à crítica. O entendimento universal é o de que mesmo as condutas humanas mais nobres e quase que universalmente aceitas podem ser alvo de discordância, de crítica e de uma apreciação negativa, desde que não se caia no insulto, na agressão ou na violência. Uma maneira simples de entender isso é fazer um elenco de uma série de ações humanas livres. Trabalhar, estudar, ser gentil, roubar, casar-se, ter um hobby, trapacear, praticar um esporte, locomover-se de bicicleta, mentir, ir à igreja, comer carne… a lista é infindável. Qualquer pessoa, guiada por suas convicções, faz uma classificação dessas condutas entre positivas, neutras ou negativas. Felizmente, algumas delas têm aprovação ou reprovação quase universal: quem negaria que trabalhar é bom, e que trapacear é ruim? Outras condutas podem ser mais controversas: dar esmola, para uns, é um ato de caridade sumamente necessário; para outros, perpetua a pobreza e dificulta a ação do poder público. Por fim, haverá atitudes que, para muitos, não são nem boas nem más, mas neutras. Esta mesma dinâmica, ressalte-se, também se aplica a todas as ações que envolvem a prática da sexualidade humana.
Ocorre que todas as condutas – mesmo aquelas condutas que a maioria das pessoas considera louváveis – podem, sim, ser criticadas, sem exceção. Se alguém quiser dizer que “casar-se é tão absurdo quanto saltar de um avião sem paraquedas”, que “trabalhar é perda de tempo”, que “dizer a verdade é deixar que os outros nos façam de trouxas”, que “ter filhos é agredir o planeta”, que “ir à igreja é hipocrisia”, que “limitar-se a ter apenas relações heterossexuais é loucura, diante da facilidade de explorar todas as possibilidades eróticas”, tem todo o direito de fazê-lo e jamais deveria ter de responder judicialmente por isso. Pouco importa quão insensatas sejam essas opiniões. É da essência da liberdade de expressão que elas possam ser escritas ou pronunciadas.
Portanto, independentemente da maneira como alguém classifique a conduta homossexual – e aqui não está em jogo a sensatez ou não dessas opiniões –, é evidente que ela não pode estar à margem do direito de crítica. Prevalecendo o entendimento dos ministros que votaram até agora, teríamos de perguntar: estaríamos em um país onde a prática heterossexual poderia ser criticada, mas a homossexual não? Ou nenhuma prática sexual poderia, a partir de agora, ser objeto de análise? Se admitirmos isso, permitiremos que o Estado não apenas defenda ou salvaguarde uma determinada concepção moral, mas a entronize e imponha, sob pena de encarceramento, a toda a sociedade, algo insólito em nossa história democrática. Estaríamos retirando toda a moral sexual – ou pelo menos parte importante dela – do âmbito da livre discussão entre os homens, algo completamente inédito e inaudito.
Mesmo as condutas mais nobres e quase que universalmente aceitas podem ser alvo de discordância, de crítica e de uma apreciação negativa
Mas a proibição do racismo, seja por atos de discriminação, seja pela defesa de ideias racistas, também não compreende uma restrição à liberdade de expressão? É certo que sim. Não faria sentido, portanto, equiparar a homofobia ao racismo, como estão fazendo os ministros do STF? Não estamos diante de manifestações de um mesmo mal, o preconceito, ainda que dirigido a grupos diferentes?
Não é difícil perceber a diferença substancial entre esta hipótese e aquelas que temos usado como exemplo. O ponto central em jogo é a distinção entre a essência de uma pessoa e os atos que ela pratica livremente – ou, mais especificamente, na diferença entre agredir uma pessoa por ela ser quem é e criticar o seu comportamento. O racismo é um “ataque ontológico”, uma agressão motivada pelo próprio fato de a pessoa existir, com todos os atributos que ela tem – atributos que, na mente doentia do agressor, são carentes de valor, de dignidade ou de beleza. Orientais, brancos, negros, índios são seres humanos com idêntica dignidade, com idêntico valor. Não há comportamentos específicos de uns ou de outros que sejam motivados única e exclusivamente pela cor da pele. Dada nossa idêntica humanidade, podemos, com liberdade, praticar qualquer conduta humana.
E no caso dos homossexuais? Também não estamos diante de um ataque à essência da pessoa? Como já dissemos, há, sim, atos de preconceito e violência que são motivados pelo simples fato de a vítima ser homossexual. São ações que negam à pessoa a dignidade que ela tem e que deriva do simples fato de pertencer à espécie humana, e que precisam ser combatidos e coibidos. Seria perfeitamente razoável, por exemplo, introduzir agravantes específicas nos crimes de homicídio, lesão corporal e injúria motivados pelo fato de a vítima ser homossexual ou transexual. Mas a simples equiparação entre o racismo e a homofobia ignora a distinção entre a inclinação (ou a condição) homossexual e o comportamento homossexual. Quanto à primeira, não há consenso a respeito de sua origem, quer na ciência, quer dentro do próprio movimento LGBT. Mas, ainda que a atração por pessoas do mesmo sexo fosse uma condição genética – o que, repetimos, está longe de ser um consenso –, mesmo assim isso não daria base para uma equivalência entre a crítica à conduta homossexual e a prática do racismo, pois a crítica ainda estaria dirigida a um comportamento, e não à inclinação homossexual propriamente dita.
Essa distinção deriva de um fato básico: As pessoas são livres. Quem tem a inclinação homossexual, sentindo atração por pessoas do mesmo sexo, tem diante de si um sem-número de caminhos: agir de acordo com sua inclinação, experimentar uma relação heterossexual, abraçar ambas as práticas, abster-se de sexo, ter um ou mais parceiros. As mesmas escolhas, aliás, que tem um heterossexual. Admitir o contrário – ou seja, que as pessoas não têm opção a não ser dar vazão à orientação sexual que tenha – é negar o caráter livre da sexualidade humana. Porventura apenas os heterossexuais seriam livres? Ou, no fim, ninguém seria livre quando o assunto é exercer sua sexualidade? Ora, rejeitar desta forma o papel da liberdade é rebaixar a dignidade das pessoas, negando-lhes sua própria condição humana, um raciocínio tão pérfido que teria consequências inimagináveis.
Amordaçar a sociedade nada tem de “iluminista” – é obscurantismo puro
Para que fique mais evidente a diferença entre o respeito à pessoa em si e as objeções ao comportamento que ela possa ter, pensemos na mãe que, por considerar que determinada escolha será prejudicial ao filho, manifesta seu desagrado quanto a um relacionamento amoroso em que ele esteja – hétero ou homossexual, pouco importa. Ainda que esta mãe esteja objetivamente errada em seu julgamento, alguém teria a audácia de afirmar que ela não ama seu filho, que não quer o melhor para ele? Este exemplo nos mostra como é perfeitamente possível discordar dos atos de alguém, mesmo que equivocadamente, sem deixar de amá-lo e respeitá-lo. O amor e o respeito devidos às pessoas não são sinônimo de aprovação automática a todas as suas ações; eles podem – e até devem, dependendo do grau de responsabilidade que temos para com quem nos rodeia – conviver com a crítica, às vezes firme, às vezes carinhosa, aos atos individuais.
E o fato de alguém ter inclinações que não estão integralmente sob seu controle não elimina a possibilidade de fazermos juízos – certos ou errados, pouco importa – sobre os comportamentos livres derivados dessa inclinação. Toda a dinâmica moral, toda a dinâmica da liberdade depende de como lidamos com nossas inclinações. Pensemos, a modo de exemplo, na condição feminina. A grande maioria das mulheres sente uma forte inclinação pela maternidade, mas concretizar essa inclinação – ou seja, ter filhos – continua a ser um ato deliberado. E, por mais absurda que possa ser a opinião antinatalista, ninguém em sã consciência pensaria em incriminar quem criticasse o desejo ou a determinação de muitas mulheres de ter filhos.
Devidamente explicada qual é a gravidade do entendimento adotado até agora pelos quatro ministros do STF que já votaram sobre a criminalização da homofobia, é preciso ressaltar que de pouco adiantam as tímidas ressalvas de Celso de Mello, aceitas pelos demais ministros que votaram até agora, em defesa da liberdade religiosa. Primeiro, porque elas não contemplam as demais críticas ao comportamento homossexual que tenham base em considerações de cunho ético-filosófico ou antropológico, sem nenhuma influência religiosa. Pais que, por convicção, ensinassem aos filhos que apenas a heterossexualidade seria moralmente correta poderiam ter problemas com o Conselho Tutelar. Um professor estaria sujeito a processo ao realizar pesquisas sobre os efeitos da adoção de crianças por homossexuais. Um estudante que, na pós-graduação, fizesse a defesa da visão conjugal ou tradicional do casamento poderia ter de enfrentar os tribunais por propagar “discurso de ódio”. Segundo, porque o relator da ADO 26 não previu nenhuma salvaguarda concreta, limitando-se apenas a dizer que, nos casos em que a liberdade religiosa estiver em jogo, o Judiciário será chamado a resolver a questão. Em outras palavras, um padre ou pastor que, em missa ou culto, se pronunciar contrário ao comportamento homossexual estaria sujeito a ser enquadrado no artigo 20 da Lei 7.716, se algum agente da lei ou promotor do Ministério Público assim entender. Até que o Judiciário – que, em muitos casos, costuma ser mais lento que o Congresso criticado pelos ministros – decida se houve discriminação real ou o exercício da liberdade religiosa, essas pessoas terão sua vida inviabilizada, sendo tratadas pelo Estado e pela sociedade como criminosas.
O ministro Luís Roberto Barroso, um dos que já votaram no julgamento sobre a criminalização da homofobia, tem defendido um Supremo Tribunal Federal que não se limite a apenas julgar os casos que recebe de acordo com a lei, mas que “empurre a história”, para citar expressão usada por ele em artigo célebre publicado no jornal Folha de S.Paulo. “É preciso que um órgão não eletivo ajude a dar o salto histórico necessário” quando os representantes eleitos pelo povo insistem em não fazer a coisa certa, segundo o ministro. A isso ele chama de “papel iluminista”, como se coubesse ao Judiciário “iluminar” a sociedade, liderando-a, caminhando à sua frente.
Ora, a luz só pode chegar a uma sociedade quando é gerada por um honesto debate de ideias, que, por sua vez, só pode existir onde a liberdade de expressão é defendida com firmeza. Os ministros, em seu entusiasmo por “fazer história”, talvez nem se deem conta do impacto da decisão que estão prestes a tomar, criando uma situação em que a liberdade de expressão é tolhida de forma inédita como jamais ocorreu em nações e períodos democráticos. Amordaçar desta maneira a sociedade nada tem de iluminista: trata-se de um caso absurdamente sério e grave, em que uma nação é tragada pelo mais nefasto obscurantismo. Que os brasileiros comprometidos com a democracia, independentemente de orientação sexual, tomem consciência do risco que a liberdade de expressão corre neste momento, e assumam a defesa corajosa de um princípio tão fundamental para a construção de uma sociedade madura.
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