Quantas não são as mulheres que tiverem suas habilidades e competência questionadas no âmbito profissional, mesmo sendo altamente qualificadas?
Por que temos uma data no calendário oficial intitulada “Dia Internacional da Mulher”? Não somos todos iguais? Já escutei essas perguntas mais de uma vez, em ocasiões distintas. Hora de respondê-las. Mas, antes, questiono: mulher pode financiar um carro, um imóvel ou adquirir qualquer coisa que bem lhe entenda? Mulher pode trabalhar? Pode ser considerada capaz civilmente (exercer direitos e contrair obrigações, respondendo nos termos das leis pelos seus atos)? Pois bem: “Óbvio que sim” são as respostas esperadas.
O curioso é pensar que todos esses avanços tiveram de ser duramente conquistados ao longo do tempo, e nem sempre a lei falava em favor das mulheres. Não em termos de igualdade. Vejamos: O Código Civil de 1916 (que, de maneira geral, vigorou até janeiro de 2003) tinha um capítulo inteiro dedicado aos “direitos e deveres da mulher casada”. Entre eles, uma lista de vedações expressas: alienar imóveis de domínio particular, litigar em juízo ou fora dele (a menos quando a lei autorizasse), exercer profissão. Ora, ora, nem tanta igualdade assim, não?
Nascemos e fomos educados quando vigoravam as disposições acima, que obedeciam a uma máxima cultural ainda vigente: homem é chefe e arrimo da família, e mulher cuida da casa e dos filhos. Muitos e muitas ainda têm essa máxima enraizada em suas pré-concepções, de modo que as mulheres contemporâneas (sim, nós mesmas, as do século 21 e do ano de 2019) enfrentam muros de concreto e barreiras de metal sob uma falsa perspectiva de igualdade.
Não adianta existir lei quando o pressuposto de sua eficácia é a observância social
Quantas não são as mulheres que tiverem suas habilidades e competência questionadas no âmbito profissional, mesmo sendo altamente qualificadas? Quantas não são constantemente interrompidas para serem corrigidas (erroneamente, muitas vezes) na exposição de suas ideias, dentro ou fora do universo profissional? Quantas não sentiram nessas hipóteses o incômodo de seu interlocutor e passaram a questionar (lá no fundinho do seu íntimo) se realmente eram aptas e sabiam o que estavam fazendo? Aconteceu comigo, mais de uma vez. Aconteceu com você também.
Haja peito de aço e reflexão para entender que, na verdade, o problema não estava em nós. Durante este carnaval, houve adesão e mobilização massiva da mídia, homens e mulheres à campanha “não é não”. Óbvio, não? Por que, então? Penso que pelos mesmos motivos por que nós, mulheres, ainda somos questionadas e censuradas (ainda que em silêncio) quando decidimos não nos casar ou não ter filhos ou, ainda, quando casamos e temos filhos, mas não abrimos mão da nossa carreira profissional ou do que quer que seja que elegemos como prioridade. Em geral, quando nos negamos a seguir a máxima cultural do modelo patriarcal.
E como respondemos por essa inversão cultural? Muitas, com censura moral e social. Outras tantas, com a própria vida. Já paramos para pensar no que é o feminicídio? O que é matar em razão do gênero? Matar ou tentar matar quando o único motivo é o fato de a vítima ser mulher? Ora, por quê? Por que maridos estrangulam suas esposas e as jogam pela janela de apartamentos? Por que ex-companheiros perseguem suas ex-companheiras e as matam com facadas ou tiros, na frente dos filhos? Por que não é seguro para as mulheres chamarem um táxi sozinhas? Ou andar em transporte público coletivo? Por que preferimos andar em uma rua vazia mal iluminada na companhia do próprio Lúcifer que dividir aquele espaço com outro ser humano do gênero masculino?
Se somos realmente todos iguais, por quê? As respostas vêm a jato na forma de números: o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de países que mais matam mulheres. Só nas três primeiras semanas do ano 2019 mais de 100 feminicídios consumados ou tentados foram registrados. Uma média de cinco casos por dia. Não esqueçamos que os dados oficiais não condizem com os dados reais, já que a subnotificação é expressiva (mais da metade).
Em razão disso tudo, a minha resposta é: não, não somos iguais. Não no mundo real. Se é que não temos direitos exclusivos (os direitos reprodutivos e aliados à maternidade mereciam um texto só deles), também não exercemos em reais condições de igualdade os direitos que formalmente são assegurados. Não adianta existir lei quando o pressuposto de sua eficácia é a observância social, e esta encontra sólidas barreiras culturais invisíveis edificadas sobre uma concepção binária e patriarcal.
Enquanto acharmos, ainda que intimamente, que homens usam azul e mulheres usam rosa; que meninos brincam de carrinho e meninas de bonecas, e que nos reinos encantados as princesas são meigas e indefesas, esperando por seus fortes e descolados príncipes para serem salvas, vamos continuar tendo de escrever o óbvio e separar uma data no calendário oficial para, ao menos uma vez por ano, interrompermos a programação normal para refletir que, na verdade, não é tudo tão igual assim.
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