O Oscar deu seu maior prêmio a um filme racista?

"Mahershala Ali, vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por 'Green Book', posa na sala de imprensa durante o 91º Prêmio Anual da Academia, 24 de fevereiro de 2019, em Hollywood, Califórnia."

A obra dirigida por Peter Farrelly foi denunciada por ter estereotipado o denominado “Magical negro”, conceito utilizado para definir quando um personagem afro-americano ajuda na redenção de brancos com atitudes reprováveis em pessoas competentes

Quando Julia Roberts anunciou o vencedor do prêmio de melhor filme na cerimônia do Oscar, Spike Lee virou as costas para o palco em protesto pela vitória de Green Book. Acusado de ser “o pior filme a ganhar o Oscar de melhor filme desde Crash”, a repercussão do triunfo teve de dividir atenções com a atitude do diretor e acusações de se tratar de uma produção cinematográfica racista, como fizeram articulistas da Vice e NBC.
A obra dirigida por Peter Farrelly foi denunciads por ter estereotipado o denominado “Magical negro”, conceito utilizado para definir quando um personagem afro-americano ajuda na redenção de brancos com atitudes reprováveis. Houve quem afirmasse que a mensagem retratada na produção seria a de que “se você é racista, mas tem um amigo negro, tudo bem”, havendo na produção uma “máscara antirracista”, mas que, ao fim e a cabo, é discriminatória.
Muitos comentários consideraram como injusta a derrota de “Infiltrado na Klan”, argumentando-se que a indústria de Hollywood deliberadamente premiou uma obra preconceituosa. Ignora-se que não foi surpresa alguma a não premiação da produção de Lee como melhor filme, mas sim o fato de “Roma” ter sido preterido — considerado até então o grande favorito. Conforme o usual no tribunal de internet, boa parte dos comentários são de usuários que nem sequer assistiram às indicações. O que importa na era dominada pela pós-verdade são os apelos à emoção, a crenças e a ideologias: elas têm mais influência em moldar a opinião pública do que os fatos objetivos.

História real

Inspirada em uma história real, a trama é centrada em um músico negro que decide realizar uma turnê em estados racistas no sul dos Estados Unidos em 1962, no auge da naturalização do racismo naquela região. Ao longo dos dois meses em que se passa a trama, se desenvolve gradualmente uma amizade com o motorista, que ao início da obra tinha conduta claramente discriminatória. Seus detratores a acusaram de tratar as questões raciais de forma superficial.
Há, é verdade, a presença de deixas cômicas, porém elas não diminuem, tampouco interferem, na seriedade dos temas abordados — solidão, homossexualidade e preconceito. De fato, o roteiro não é complexo, há personagens caricatos e facilitações narrativas que, inclusive, deixam algumas cenas da trama previsíveis.
Contudo, essa era justamente a intenção do diretor Farrelly: construir um feel good movie, dando ao filme um valor de entretenimento. O resultado é uma produção leve, gostosa e eficaz, e que, diferentemente do fizeram a Vice ou a NBC, muitos interpretaram como uma obra que até mesmo estimula um sentimento de unidade entre as raças, tendo em vista que a inicialmente improvável relação de trabalho entre os protagonistas transforma-se em um laço de amizade verdadeiro — na vida real, os protagonistas do filme permaneceram amigos até o fim da vida; ambos morreram em 2013.

Muita política

As críticas ao filme compõem mais um capítulo que vem se desenhando nas últimas décadas a respeito das transformações da cerimônia. Sua relevância aumentou a partir dos anos 1980, com o evento deixando de ser visto como a “festa da firma” e passando a simbolizar de fato uma premiação do mérito estético, se tornando algo cobiçado por todos que compõem a indústria. Todavia, conforme atesta Paulo Polzonoff, “sucumbiu-se ao peso da própria sensação de autoimportância a partir de meados dos anos 2000”: passou a ser vista não mais como capaz de reconhecer o mérito artístico dos envolvidos, mas como ferramenta de promoção de diversas plataformas políticas.
Em vez do entretenimento a serviço da arte, a arte passou a ser condicionada como agente transformadora. As produções e os atores passaram a buscar endossar uma plataforma, com os integrantes da academia passando a ser vistos como intelectuais e representantes de causas de grupos minoritários.
A arte não é indissociável da política, e nem precisa ser. A politização do Oscar, no entanto, mais se assemelha a uma partidarização, não havendo muito espaço para a pluralidade de ideias. As plataformas endossadas são sempre as mesmas: desde a valorização de grupos identitários em detrimento do indivíduo, passando por políticas de gênero, até a servidão ao politicamente correto.
No contexto político americano, tratam-se de valores mais associados ao partido democrata. Não à toa, Lee, que tanto perseguiu ao longo de décadas sua primeira estatueta, quando conseguiu, preferiu aproveitar os holofotes para mirar as eleições presidenciais em 2020, em um discurso repudiado posteriormente pelo presidente americano Donald Trump.
A ascensão desse caráter político é indicada como um dos principais fatores para a audiência da cerimônia ter caído. A despeito disso, ainda se trata de um dos principais eventos da televisão americana, perdendo em faturamento de publicidade apenas para o Super Bowl.

Questões raciais

Há três anos, contudo, a premiação foi marcada pelo #OscarSoWhite, protesto pela ausência de indicações de negros para as categorias de direção e atuação. Após o movimento, a academia realizou alterações em seu quadro de votantes em busca de maior diversidade. Se por um lado os ativistas conseguiram o que buscavam — esta foi considerada a edição do prêmio com maior representatividade negra —, por outro se reconhece que obras foram agraciadas em virtude da temática, e não apenas do valor artístico.
Por conseguinte, um evento que era para premiar os melhores da indústria cada vez mais assume outro papel. Mesmo estatuetas que não deveriam causar polêmica em virtude da qualidade premiada, como ‘Moonlight’ em 2017, passaram a ter de carregar um asterisco pela vitória, acusada por críticos de ter vencido La La Land apenas por abordar questões raciais.
Pelas regras da academia, não é divulgada a quantidade de votos que cada um dos indicados tiveram. Dessa forma, Green Book pode não ter sido o mais votado na preferência dos membros da academia, e sim a obra mais amplamente aceita. Pode-se considerá-lo como medíocre, no sentido de ser mediano, de não haver nada extraordinário, mas, conforme assevera Rubens Ewald Filho, um dos maiores críticos brasileiros, “o Oscar pode até não ser justo, mas não é desonesto”.
Talvez Green Book não seja mesmo a melhor produção do ano — elas nem sempre ganham —, mas categorizá-lo como uma obra racista exige um salto argumentativo grande demais. É possível que, por detrás de tamanha hermenêutica, esteja um grito que pede por reconhecimento, ainda que este seja conquistado pelo que o vencedor representa, em vez de pelos méritos de seu trabalho artístico.

Confira matéria do Site Gazeta do Povo.

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