Rede de ONGs usa a comoção para sustentar negócio lucrativo e luxos de fundadores

Uma das cartas enviadas pela ONG com boleto para doações Uma das cartas enviadas pela ONG com boleto para doações| Foto: Reprodução

Nos primeiros dias de fevereiro o país todo se comoveu com a foto do padre Júlio Lancelotti quebrando a marretadas pedras colocadas embaixo de um viaduto. As pedras, colocadas pela prefeitura de São Paulo, tinham o objetivo de inibir a presença de moradores de rua e o Padre, indignado com isso, resolveu tomar uma atitude. “É uma política necrófila, higienista e desumana”, disse o padre durante a ação.

A foto correu as redes sociais gerando indignação e admiração pelo trabalho do religioso. Mas há algo sobre ela que não aparece nas imagens. O autor da foto se chama Henrique de Campos, um fotógrafo e ativista de esquerda, especialista em marketing e que aprendeu com seu pai, Humberto Silva, como transformar causas sociais em dinheiro, muito dinheiro.

Humberto é um conhecido ativista que luta no combate à hepatite C e que fundou diversas ONGs em uma rede para a captação de recursos. Essas instituições são administradas pela empresa de marketing H2A, fundada por Henrique e seu pai, e são denunciadas por não destinarem todos os recursos às causas que dizem apoiar.

Estratégia

Humberto, que já foi empresário da área de esporte e de turismo descobriu um negócio promissor e altamente lucrativo: o mercado de arrecadação de doações. Criou então a H2A, empresa de marketing que traz em seu nome os fundadores, os H’s são Humberto e seu filho Henrique, e o ‘A’ é de Alexandre Ferreira, um funcionário que conseguiu o status de sócio. Junto do grupo constam mais uma série de pessoas, seja como funcionários ou como associados das ONGs, como Verginia Alves, ex-esposa de Humberto, e a professora aposentada Maria Leonor Gitirana, que presidem algumas dessas entidades.

Ex-funcionários e pessoas que foram ligadas à H2A explicam que a estratégia do grupo consiste em criar ONGs com propostas variadas e apelativas e em seguida elas contratam a própria H2A. De animais abandonados a crianças com câncer e pessoas portadoras de hepatite. Se há uma causa que estimula doações, ela terá uma ONG pronta para receber o seu dinheiro. Mesmo que esse dinheiro não vá necessariamente para as causas a que se propõem. A técnica agressiva de captação de recursos inclui práticas controversas. Tudo para sustentar viagens de primeira classe pelo mundo todo, estadia em hotéis cinco estrelas e imóveis de luxo.

Na teoria, são diversas associações independentes. Na prática, todas fazem parte da própria H2A. Isso é explicitado pela ação judicial do ex-funcionário Henrique Franco, que entrou na justiça pleiteando seus direitos: reclamava que foi contratado para trabalhar apenas em uma ONG, o Fundo de Assistência à Criança, mas acabava trabalhando para todas do grupo. A juíza, na decisão, concordou com o pedido de Henrique, de que haveria solidariedade na dívida entre as ONGs, e observou sobre a confusão nessas contas.

“Ademais, as planilhas financeiras e e-mails demonstram que há uma verdadeira confusão patrimonial entre as reclamadas, as quais se utilizam reciprocamente de numerários umas das outras, o que denota verdadeira afinidade empresarial”, diz a juíza do trabalho Thereza Christina Nahas na decisão.

Henrique Franco não quis conversar com a nossa reportagem. No seu LinkedIn ele informa que trabalha ainda hoje com marketing social na ONG de André Meira, outro ex-funcionário da H2A e uma peça-chave no caso.

Negócio da China

O processo de captação da H2A foi inspirado nos projetos do ativista sino-americano Joseph Lam, filho de Nora Lam, uma missionária cristã que inspirou o filme ‘China Cry’, um relato de sua fuga da ditadura chinesa, ainda no período de Mao Tsé-tung. O testemunho de Nora alcançou milhões em solo americano.

Nos EUA, Nora construiu um império evangelístico e comandou diversas cruzadas de arrecadação de recursos. O Nora Lam Ministries, que tinha como propósito enviar bíblias para a China comunista, foi o embrião para o World Children’s Fund e International Medical Mission, que passaram a ser comandados pelos seus filhos Joseph Lam e Ruth Kendrick.

As ONGs do grupo foram denunciadas ao longo dos anos por práticas como o envio de cartas apelativas e destinação indevida dos recursos: cerca de 80% do valor arrecadado era utilizado com as despesas das cartas.

Em 2011 a unidade da Unicef na China alertou que o World Children’s Fund estaria utilizando um logo e nome parecidos com os seus para ludibriar as pessoas e receber doações desde a década de 90. Afirmou também que solicitou uma investigação sobre o sistema de arrecadação via mala direta da WCF.

A própria Nora Lam teve a captação de recursos para suas iniciativas questionadas ainda na década de 90. Segundo o historiador americano Randall Balmer, no seu livro “Encyclopedia of Evangelicalism”, o ministério de Nora, apesar das acusações de irregularidades financeiras e técnicas evangelísticas enganosas, continuou a ter sucesso e popularidade entre os evangélicos. E sua organização, com sede em San Jose, Califórnia, arrecadou vários milhões de dólares.

A iniciativa no Brasil

Em 2001 os Lam queriam iniciar no Brasil um trabalho nos moldes do que eles já aplicavam no exterior, mas precisavam de alguém de confiança. Escolheram Humberto e juntos criaram o Fundo de Assistência à Criança (FAC), já começando suas atividades com a proposta do marketing direto via cartas. Joseph participou da criação das ONGs da H2A, constando nas atas de fundação.

A Associação Brasileira dos Portadores de Hepatite (ABPH) veio em seguida, um projeto pessoal de Humberto, que, em entrevista ao apresentador Jô Soares, em 2011, contou que iniciou o projeto por ter se descoberto infectado com hepatite C e a partir daí surgiu o desejo de combater a doença.

Tempos depois os americanos não tiveram mais interesse no mercado brasileiro e os grupos se separaram. A marca então foi redesenhada a pedido dos americanos, mas o método de captação continuou o mesmo.

As ONGs

Tanto a FAC quanto a ABPH funcionam na sede da H2A, nos arredores da Avenida Paulista, em São Paulo.

A principal captadora de recursos é a Associação Cultural Santo Expedito, que utiliza a imagem do santo homônimo e tem como proposta ajudar pessoas carentes ou em situação de miséria. É presidida pela professora aposentada Maria Leonor Gitirana e sua sede fica no Rio de Janeiro.

Uma outra associação é a Amor às Crianças. Um projeto de internacionalização do esquema para captação de recursos em dólar e euro. Mas a iniciativa não deu o resultado esperado devido ao trabalho feito por órgãos de controle desses países, que exigem transparência e uma porcentagem mínima de recursos a serem doados.

E ainda uma outra ONG ligada ao grupo é o Instituto Mapaa. O projeto de proteção animal, segundo ex-funcionários, consiste em apenas algumas ações de doação para divulgação do projeto, puro marketing. É presidida pela ex-mulher de Humberto e mãe de Henrique, Vergínia.

A Missão Médica Internacional (MMI) é mais uma das ONGs que integraram o grupo. Hoje é presidida pelo empresário Márcio dos Santos. A MMI não apresenta em seu site nenhuma informação sobre onde é gasto o dinheiro arrecadado nem quem comanda o projeto.

As ONGs, segundo a legislação brasileira, não precisam prestar contas à população das doações que recebem. Apenas precisam prestar contas caso recebam recursos públicos.

As associações ligadas ao grupo de Humberto, conscientes dessa brecha, não recebem um centavo de dinheiro público. Assim, ficam livres para gastar como e o quanto quiserem.

Ajuda da pandemia

Tanto Henrique, quanto Humberto têm utilizado a pandemia da Covid-19 para captação de recursos. Henrique criou dentro de seu projeto “Miséria que Habita” uma campanha para arrecadar fundos para a compra de testes de COVID-19 e denuncia um “genocídio indígena” por parte da gestão Jair Bolsonaro. A campanha conseguiu mobilizar artistas e celebridades nos pedidos de doação como o humorista Rafael Portugal, o apresentador Daniel Zukerman e a atriz Luiza Brunet.

O site do Miséria que Habita está registrado no nome da Mapaa, de Vergínia, e o pagamento é feito via PagSeguro e vai para o fundo de Assistência à Criança, de Humberto.

Já Humberto criou em parceria com o Rotary o Corona Zero, com o objetivo de testar idosos em asilos. “Eu quero testar todos os asilos do mundo”, afirma Humberto em um vídeo institucional.

Enquanto Henrique apresenta um breve balanço do quanto arrecadou e o quanto supostamente foi doado pela sua campanha, Humberto segue o procedimento das ONGs do grupo e não mostra onde os recursos são aplicados.

Compra de dados

As atividades das ONGs são centralizadas na H2A, que utiliza gigantescos bancos de dados para contatar pessoas por meio de campanhas milionárias. Organizadas para captar o máximo de recursos possível, essas campanhas usam dados comprados de empresas especializadas a peso de ouro, ou obtidas de maneira ainda mais controversa.

Um dos maiores motivos de reclamação na internet é o uso indevido de dados das pessoas para as quais são enviados boletos com os seus nomes.

“Solicito pela segunda vez contato para discutirmos em quais circunstâncias é lançado BOLETO REGISTRADO DDA em minha conta BRADESCO. Há inúmeras ocorrências semelhantes no site RECLAME AQUI. Caso não receba o devido contato desse FAC, procurarei a DELEGACIA DE POLÍCIA CIVIL E JUÍZADO DE PEQUENAS CAUSAS. Novamente, peço contato. Tentei entrar em contato pelo seu site, mas o seu e-mail retorna com erro. Não permitirei mancharem meu nome e CPF, o que será devidamente cobrado dos responsáveis a titulo de PERDAS e DANOS morais. Já comuniquei o Bradesco”, comenta uma pessoa na página do FAC.

“Chantilly”

André Meira, ex-integrante dos Arautos do Evangelho, grupo católico que vem sendo investigado pelo Ministério Público e sofre intervenção do Vaticano, foi uma peça chave nesse processo. Após sair de uma das ONGs ligadas aos Arautos, quando suspeitaram que ele vendia os dados dos doadores e também por suspeita de recebimento de propina, André foi trabalhar para a H2A e ajudou a aperfeiçoar o esquema de captação de recursos. Levou não apenas o que ele tinha aprendido com os Arautos, mas também diversas listas com os bons pagadores. Essas listas, chamadas por eles de “chantilly”, seriam uma nova fonte de doações.

Tendo os dados dos Arautos do Evangelho em mãos e seguindo o lema “Não há melhor forma de agradecer do que pedir mais”, de André (Após receberem a primeira doação, uma carta de agradecimento pedindo mais dinheiro é enviada), os negócios na H2A decolaram.

Segundo ex-funcionários, os sócios da H2A viram o seu patrimônio multiplicar por dez a partir de 2012. Em 2014, só o Fundo de Assistência à Criança captou cerca de R$ 1,5 milhão por mês.

André Meira, em determinado momento, passou a captar os dados da H2A para uso posterior em futuros projetos seus. Mesmo na época recebendo cerca de R$ 23 mil, mais comissões de cerca 30 mil por mês. Foi descoberto e demitido.

Em mensagens trocadas em meados de 2016, ele confessa o medo da prisão, que ele acreditava ser iminente. Mas nada aconteceu, e hoje André dirige a FAOS (Fundo de Apoio às Organizações Sociais) junto da sua atual esposa, Vivian Marques, atuando nos mesmos moldes que as organizações para as quais tinha trabalhado.

Campanhas milionárias

A forma de arrecadação deles é sempre via mala direta, enviadas aos milhões para endereços de todo o País. A H2A é um dos dez maiores clientes dos correios no Brasil e segundo maior captador de recursos via cartas, atrás apenas dos Arautos do Evangelho.

A campanha, por sua vez, consiste em identificar as pessoas alvo dentro dos bancos de dados que são segmentadas de acordo com a renda, a idade ou outras características, e fazer disparos de mala direta. O conteúdo geralmente é igual: Uma carta falando sobre a causa de uma criança doente ou pedindo doações para uma clínica. As mensagens são dramáticas, produzidas para comover quem as lê, e trazem ao fim um pedido de doação.

“Venho a você hoje pedir, porque eu sei que você, como eu, confia no bem maior e quer que a cura chegue a esses pequenos, que tanto sofrem. Eu sei que você, ao ver uma criança escurecer o olhar, como mirando para dentro, sem nenhuma esperança… triste pela doença, eu sei que você sente um aperto no coração”, diz uma das milhares de cartas enviadas para captação de recursos.

É também enviado junto um brinde, que pode ser uma caneta ou uma medalhinha de um santo. É o “truque”, que, segundo Humberto, foi aprendido com Joseph Lam, e é utilizado para fazer com que a pessoa doe por dó da empresa que gastou com o presente.

“Isso daí é uma estratégia de marketing, a pessoa fica um pouco na obrigação fala: ‘poxa o coitado está me passando um presentinho, então eu vou dar atenção pra ele’. É uma tática que dá certo no marketing. É um investimento que a gente faz. Se compra 100 milhões de brinde, aquilo lá traz 200 pra ONG”, conta Humberto.

Os brindes, são muitas vezes comprados de empresas do próprio grupo. Mais uma forma de o dinheiro ir para os próprios “donos”. São também comprados de empresas estrangeiras que enviam para o Brasil os milhares de envelopes prontos para a distribuição.

Por último, a parte mais importante: vai junto um boleto com os dados da pessoa para pagamento junto ao banco. Os boletos DDA não são obrigatórios, ou seja, se não for pago, não há cobrança. Mas muitas pessoas, geralmente as mais simples ou idosas, acabam pagando e com isso passam a fazer parte dos doadores mensais fixos da rede.

Milhares de reclamações na internet escancaram as práticas controversas que continuam a ser praticadas livremente.

Parte da extensão da utilização de dados de cidadãos é exposto pelo próprio Henrique no site de sua campanha de arrecadação “Miséria que Habita”. Onde ele diz que a H2A possui cadastro de “milhões de contribuintes”.

Henrique também conta que é cofundador da H2A e que ela é responsável pela captação de mais de R$ 150 milhões em recursos para os seus clientes.

Atividades internas

Nossa reportagem conversou com outros ex-funcionários, que trabalharam nas áreas de comunicação e tecnologia da informação, e que não quiseram se identificar por segurança. Aqui os chamaremos de João e Daniel (nomes fictícios), respectivamente.

João conta que o procedimento interno da empresa possui um grande contingenciamento de informações para que nenhum funcionário saiba de tudo o que acontece ali.

Por isso, conta João, havia uma alta rotatividade de funcionários. Conta também que era a H2A a controlar as ONGs, que tinham parte de suas atividades acontecendo na própria sede da empresa, e que havia grande cobrança por resultados, fazendo com que o clima dentro da empresa fosse pesado.

João* confirma a grande soma de valores que são captados pela H2A.
“Você fez uma campanha singela e tem um retorno absurdo, muito maior que o necessário. São ONGs que captam muito dinheiro. É uma máquina de gerar dinheiro”, explica.

Segundo Daniel, a H2A utiliza uma estratégia meticulosamente planejada para captar recursos apelando para o lado emocional das pessoas, fundando ONGs com causas diversas.

“No caso da ONG você precisa de uma causa recorrente com um motivo bem apelativo: criança com câncer, gente desesperada, pobre. E nada comove mais que pessoas com câncer, do que gente em extrema necessidade, do que animais. Por isso que as ONGs são fundadas com esses objetivos”, conta o ex-funcionário Daniel*.

Daniel* explica que há um grave desvio ético nas atividades da H2A e isso sempre o incomodou. Ele afirma que teve acesso a uma carta enviada para a Associação Cultural Santo Expedito que solicitava a suspensão da cobrança de doação naquele mês, algo que o levou a entrar em uma profunda depressão.

“Era de uma senhora, claramente semianalfabeta. Ela estava pedindo perdão para o santo porque não pôde pagar os 20 reais com os quais ela contribuía mensalmente por causa de um acidente de moto com o neto. Ela prometeu para o santo que devolveria em dobro no mês seguinte, 40 reais. Você apela direto para os sentimentos da pessoa, se você manda uma carta escrito Santo Expedito a pessoa não vai identificar que é uma ONG, ela vai achar que é o Santo em pessoa.”

Para ele, o método de captação de recursos é imoral e um jeito sujo de ganhar dinheiro.

“É com esse tipo de recurso que eles ganham dinheiro. É com gente bem humilde, que não conhece o esquema e se sensibiliza com a história da carta, se sensibiliza pelo brinde. É apelativo, eles conseguiram um jeito de explorar a boa fé das pessoas. Essa é a imoralidade que me incomoda, porque é um jeito sujo de ganhar dinheiro”, diz.

Ambos declaram sentir muito medo de retaliações.

“É muito dinheiro. A gente não sabe até onde vai a maldade do ser humano quando a coisa é relacionada a dinheiro. É uma coisa obscura, a gente tem receio de estar falando. Por uma questão de segurança”, conta João.

Arquiteto paulistano faz denúncia

Fernando Stickel, arquiteto paulistano que trabalha há anos no terceiro setor, recebeu um dos malotes da Associação Santo Expedito e desconfiou que poderia ser um golpe. Publicou no ano de 2014 no seu blogue “Aqui tem coisa” um relato sobre a medalha que recebeu e as suspeitas que tinha.

“Este parece ser um estratagema discreto e silencioso, com milhares (desconfio que sejam CENTENAS DE MILHARES) de malas-diretas enviadas pelo correio para pessoas de boa fé, que voluntariamente pagam boletos de 10, 20, 50 reais para hipoteticamente ajudar os desvalidos. Digo hipoteticamente porque a Associação não divulga relatórios de uso do dinheiro arrecadado”, publicou na ocasião.

Segundo Stickel, a simples publicação dos valores arrecadados onde são aplicados já resolveria facilmente a questão.

“Para encerrar, volto a afirmar que as dúvidas e suspeitas que recaem sobre a Associação Cultural Santo Expedito seriam simplesmente extintas dos anos anteriores, desde caso fossem publicados seus relatórios operacionais do ano corrente e sua criação, contendo os valores arrecadados, quais as formas de arrecadação, os nomes dos doadores, e onde como são aplicados estes recursos”, escreveu em seu blogue.

Em face disso, a Santo Expedito o processou por danos morais exigindo a retirada da publicação do ar, sob pena de multa. O Google também foi incluído na ação. A juíza Vanessa Ribeiro Mateus, da 8ª Vara Cível de São Paulo, inocentou Stickel. Para ela não havia justificativa para a ação pois o arquiteto apenas fez indagações, não acusações, e estava exercendo o seu direito à liberdade de expressão.

Stickel também realizou uma denúncia no Ministério Público de São Paulo, que investigou as atividades da ONG, mas concluiu que não havia a prática de fraude, pois ela de fato fazia algumas doações. Aos investigadores foi apresentado o “livrão”, um registro das atividades de doação e que é produzido especificamente para situações como essa.
Com isso, o processo foi arquivado.

“Eu gostaria muito que algum jornalista investigativo se interessasse por este assunto, tenho certeza que existe aí muita coisa a ser investigada”, disse Stickel na ocasião.

Gaeco

Uma denúncia foi realizada no GAECO-SP (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). Foram entregues planilhas e movimentações financeiras das ONGs da H2A. A pessoa que realizou a denúncia, que prefere não se identificar por motivo de segurança, contou à reportagem que durante o tempo em que esteve em contato com o grupo sempre desconfiou da destinação dos recursos e decidiu denunciar pois viu que o esquema cresceu sobremaneira nos anos subsequentes.

“Eles fingem que ajudam as pessoas e fazem uma doação mínima para não causar suspeitas. Sempre achei estranhíssimo ONGs com uma captação de recursos dessas. Por que as pessoas fazem uma campanha milionária para uma coisa que custa tão pouco, ou nada?”, conta.

“Eles criaram um meio de ganhar dinheiro e parecer bons. Eles arrancam dinheiro de gente pobre. O repasse disso é muito pequeno e não justifica o tamanho da máquina. Se eles fossem tudo isso, essas ONGs seriam milionárias. Teria hospital sendo fundado em todo lado.”

“Espero que tenha alguma legislação sobre isso. A lei é muito frouxa, não dizer quanto tem que ter de repasse é deixar uma margem pras pessoas desviarem dinheiro”, dispara.

O Gaeco informou que os procedimentos de investigação são sigilosos, e que por isso não podem ser prestadas informações a respeito.

O problema legal

Segundo a contadora especialista no 3º setor Walkyria Santana, o maior problema nessa situação é moral, e não legal, pois a legislação brasileira é pobre em relação a isso.

“Legalmente não há nada que impeça [uma ONG comprar serviços de alguém de sua diretoria] desde que não receba valores públicos. Se no estatuto não constar esta proibição pode sim, ainda que moralmente duvidoso”.

Walkyria também explica que as ONGs devem prestar contas dos valores arrecadados à Receita Federal e que cabe ao Ministério Público a investigação em caso de denúncias.

O vice-presidente da Associação Paulista de Imprensa (API), César Romão, entrou em contato com nossa reportagem para obtenção de informações. César, que é palestrante e escritor de livros de autoajuda, é também ligado ao Rotary Clube e ao próprio Humberto, que confessou ter pedido ao amigo uma ajuda para resolver a situação que o colocava em apuros.

“Eu gostaria dizer que nós somos parceiros inclusive da associação paulista de imprensa, temos o aval do vice-presidente da API. Eu pretendo que haja coerência na sua reportagem. A nossa vida é totalmente transparente. Desafio qualquer um a vir provar o contrário!”, afirmou Humberto.

Respostas

Humberto negou as acusações de que há fraude ou apropriação indébita dos recursos arrecadados. Embora as ONGs não tenham transparência em seus dados contábeis e financeiros, Humberto afirma que a contabilidade e o gerenciamento de pagamentos são feitos pela multinacional holandesa TMF.

Humberto prometeu apresentar balanços das ONGs e da H2A, mas até o momento desta publicação não recebemos tais documentos.

Também confirmou possuir uma mansão no interior de São Paulo que, embora esteja em um condomínio de alto padrão onde os valores de residências vão de R$ 1,5 milhão a R$ 3 milhões, é chamada por ele de “casinha”, e apartamentos de luxo na capital. Mas afirmou que todos foram financiados e que os recursos provêm de seu trabalho na H2A. Sobre as viagens pelo mundo em voos de primeira classe e hospedagem em hotéis de luxo ele explica que são formas de captar recursos.

“Eu não sou pobre, não sou obrigado a ser pobre, eu não quero ser pobre. Eu não fiz voto de pobreza. Eu gero para essas ONGs milhões e o que a nossa agência recebe nem faz parte, nem 20% do que nós deveríamos ganhar pelos milhões que nós arrecadamos para as ONGs. Eu sempre tive um padrão de vida, eu venho de uma família boa. Não sou um cara que caiu do nada. É justamente no meio dos ricos que a gente obtém recursos. E consegue verbas para ajudar as ONGs. Eu conheci tanta gente ficando em bons lugares e bons hotéis. Eu tenho um monte de coisas, relações com o mundo inteiro”, replica Humberto, mesmo tendo ele vendido o próprio carro para investir no trabalho social quando ainda tinham poucos recursos.

Sobre a compra de dados, Humberto nos contou que não compra mais de empresas dados de pessoas para captar doações e que, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não está em vigor no momento, ainda vai regularizar a situação para entrar em conformidade com a nova legislação.

Por fim, Humberto reafirma a qualidade do seu trabalho. “Nós temos um trabalho muito forte, muito humanitário. E em 20 anos, será que ninguém nunca questionaria nada? Acho que já teriam encontrado algum estelionato se houvesse, né? Deus me livre”.

Henrique de Campos, Maria Leonor Gitirana, Marcio dos Santos e André Meira não retornaram o nosso contato. O GAECO nos informou que os procedimentos são sigilosos, e que por isso não podem ser prestadas informações a respeito. Padre Júlio Lancellotti contou à nossa reportagem que o trabalho de Henrique de Campos à sua equipe é voluntário e que não conhece a H2A.


Confira a matéria na Gazeta do Povo

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